terça-feira, 1 de setembro de 2015

De volta ao UTMB - TD...S de Selvagem!

Pouco mais de 2 meses depois da ultima aventura regresso a Chamonix. Agora noutro registo, em família, com regulamentos e marcações, mas também com o rabinho mais apertado. Mas que não restem dúvidas, a nossa volta ao Mont Blanc foi A Aventura Do Ano, tudo o resto é paisagem. Mas uma prova tem sempre aquela componente de 1 ou 0, tudo ou nada, que é preciso ultrapassar. E por isso o rabinho....

Preparação



Tendo em conta que estivemos lá em Junho a fazer o Tour du Mont Blanc (TMB) no sentido contrário ao UTMB (por razões que poderão descobrir lendo o texto da aventura) acabámos por fazer os primeiros 15 Km do TDS. Depois mais um pouco em Contamines e a parte final de Les Houches, eram já sobejamente conhecidas. Diria que 30 Km do percurso eram conhecidos  e pacíficos. Restavan 90. Tentei estudar o percurso o melhor que pude e calcular tempos de passagem em várias zonas. Pela primeira vez consegui levar uma cábula, não com o perfil, mas com a altitude de vários pontos chave e estimativas de passagem. Perdi algum tempo a fazer contas e a tentar estimar horas para cada ponto. Mas depois dos 50 Kms a estimativa não batia certo. Acabei por considerar que 24-25h seria um bom objectivo mas tudo isto com um grande grau de incerteza. Conhecia bem a fama da prova: a mais difícil, A prova, a selvagem, etc. Não cheguei a analisar o que valiam 24h na classificação do ano passado. Deixei uma cópia das horas nos vários pontos de passagem com a Dora, para ela ir confrontando com os SMS da organização e perceber como estava a correr a prova.

Como bom Tuga falharam 2 elementos muito importantes na preparação. A nova mochila da Grivel que comprei não chegou a tempo de um único treino longo e nas 2 ultimas semanas percebo que não tinha sapatilhas de trail em condições e não ia ser fácil adquirir umas já comprovadas nos meus pés. Os meus pés são o meu ponto fraco, talvez porque eu seja uma Cinderela e tenha andado a correr este tempo todo com os sapatinhos de cristal errados,,,
Um pouco por feeling e em conversa com o Marco da run.pt decido finalmente gastar um pouco mais e compro umas Ulta Raptor da La Sportiva. Jà li tanta coisa, o João Nuno diz que são excelentes, o Marco confirma, que se lixe. Depois de uma estreia que quase me cose um pé, troco as palmilhas por umas velhinhas e sigo com as minhas lindas sapatilhas apenas com 50 Km de uso. Grande risco que a Cinderela assumiu. Nem sequer protegi com tape o metatarso por detás do dedo grande, a zona mais massacrada do meu pé direito. Foi mesmo à boss! Sentia que o raio das sapatilhas eram mesmo confortáveis. Raio dos italianos percebem disto.

Bora lá fazer a TDS



3h40, encontro-me com o Bruno Safara a caminho do autocarro que partia às 4 para Courmayeur. Até saímos antes das 4 e tento dormir um pouco pelo caminho. Não deu nada de jeito. Tinha-me deitado às 21h30 mas pouco tinha dormido a partir da 1h. O stress habitual que não deixa descansar.
Em Courmayeur o pavilhão de Dolonne estava aberto e cheio de pessoal a aguardar pela partida. Excelente porque a noite estava fria e iríamos gelar cá fora à espera. Estariam 8ºC. Encontrámos um cantinho onde esticar o esqueleto. Tínhamos 1h e ainda passei por uma ou outra brasa.
Um pouco antes das 6 lá fomos para a partida no centro da cidade e conseguimos reunir todo o grupo; Nelson, Flávio, Trindade, Bruno, Paula, Daniel, Nicolau. Aqui está a foto daquele momento único

Poucos segundos antes de começar a TDS (foto Nicolau Silva)
A primeira ascensão foi feita à conversa com o Flávio e no Lac Combal já o Bruno vinha junto e o Trindade também acabou por se juntar a nós. Até aqui nada de novo e muita tranquilidade. Depois do Lac Combal íamos separar do percurso do UTMB e virar à esquerda, por assim dizer. 
Estávamos a esmagar o tempo que tinha estimado mas sabia que tinha sido conservador e que era muito cedo para tirar quaisquer conclusões.

A subida ao Col Chavannes é fabulosa com algumas passagens bem radicais, tipo se escorregas aqui vão apanhar os teus bocadinhos lá em baixo. A vista para o vale de La Seigne é avassaladora. Toda esta parte, nova para mim e para todos no grupo, é uma maravilha. Passado o Col espera-nos uma descida em estradão, espectacular. Inclinação suficiente para deixar o corpo ir, água gelada em cascatas aqui e ali para encher os bidons, seguimos à conversa tranquilamente.


No final daquele vale infinito haveríamos de ter de ganhar altitude para subir ao Col du Petit St. Bernard já conhecido de há 2 anos quando fui fazer o UTMB mas antes acompanhei a TDS do Paulo Fernandes. Tinha ganho alguma distância do Bruno e do Trindade o que deu jeito para fazer alguma manutenção aos pés enquanto não chegavam. A Cinderela levava um boião de Halibut e sempre que começava a sentir um ponto de fricção era hora de atacar a coisa. Quando estava pronto para sair ainda chega a Paula Penedo e o Trindade e o Bruno estavam nos finalmentes de modo que fui andando devagar.

Tinha algum receio da descida a Bourg de St Maurice porque o Paulo há 2 anos tinha demorado muito tempo na descida e queixou-se imenso das pedras pelo caminho. São quase 14 km de descida em que se descem 1400 m. Aqui comecei a sentir a diferença dos Ultra Raptor. Grande suporte, bom isolamento do piso, conforto. A descida foi feita sem problemas e cheguei a Bourg em pouco mais de 1h30. O mesmo esquema de tratar dos pés, comer e chega o Bruno com a Paula, O Trindade chega um pouco depois. Fui ao controlo de material e como eles estavam a comer lá fui andando. Literalmente! Esperavam-nos 2 Km verticais. Quem quer correr?

Começou a TDS

E foi aqui que começou a TDS. Km 50. Daqui para a frente entramos em terreno inóspito. Só voltaremos à civilização quase 50 Km e 10h depois. Subidas de arrasar, como esta de 2 Km, feita debaixo de um sol abrasador. Se ao princípio ainda íamos num bosque, rapidamente a coisa fica careca e a subida fica a pique. A 2/3 do Col de La Forclaz, em Fort de La Platte água gelada a fartar. Depois a inclinação acalma um pouco. A minha preocupação era passar em Passeur du Pralognan ainda de dia, Uma descida muito técnica, a pique, com cordas e toda em pedra.
Na subida à conversa com um francês ele descreve-me todo o traçado e as horas a que íamos passar em cada ponto. Ia 2 horas à frente da minha estimativa de 25h. Tinha muito muito tempo antes de anoitecer. A coisa estava a correr bem. 
Segue-se Col de La Forclaz onde vamos descer um pouco antes de subir para Passeur de Pralognan. Que paisagem brutal toda esta zona. Contornamos um vale a meia altitude. Tudo é pedra. O trilho mal existe aqui e acolá. As bandeiras bem podiam estar em qualquer lado. As passagens são muito perigosas. Com calma tudo se transpõe. Quando começamos a ganhar altitude para Passeur a coisa fica imprópria para pessoal com vertigens. O trilho quase que não existe por vezes. Com muito respeito lá se passa nas zonas mais perigosas. Uma escorregadela ali e é o fim muitas centenas de metros abaixo. A adrenalina e a paisagem ajudam à festa. 

Por fim Passeur de Pralognan. Tal como o imaginei. Uma parede para descer, toda em rocha, cordas aqui e acolá, saltar de pedra em pedra por ali abaixo. De cá de baixo a vista deixa-me sem palavras. Não se vê o trilho, só a parede de pedra, e um maluco aqui, outro ali, Que visão!

Faltava agora rolar um pouco até ao Cormet de Roseland, muda de roupa, refeição quente. Sentado numa pedra o Romeu bate uma bela chapa.



Tinha dito à Dora que gostava de chegar aqui às 20h e sair ainda de dia por volta das 20h30, Consegui chegar às 18h20 e devo ter demorado 20 minutos ou menos a sair. A coisa estava a correr bem. Não havia euforias com esta hora e meia que tinha acima do estimado. Sabia que havia muito terreno desconhecido pela frente e as contas fazem-se só no final.
Para minha surpresa estavam lá o Nelson e o Flávio com o Tiago. Sabia que eles iam juntos porque o team que nos estava a seguir (Tulio, Raquel e companhia) me tinham dito em Bourg de St Maurice, mas não imaginei que os iria encontrar. É pessoal de outro campeonato. O Flávio barafustava que estava ali há 1 hora à espera e o Nelson dizia para ele ir andando. O costume nestas coisas. O Túlio entretanto fazia fotos à socapa do lado de fora do abastecimento.


Como e troco de roupa em multi tarefa. Insistem em esperar por mim, Acabo por me despachar quase ao mesmo tempo que o Nelson e saímos juntos. Ainda metem um trotezito porque era a direito mas rapidamente a coisa empina e seguimos em fila indiana, Segue-se Col de La Sauce.. O tal francês já me tinha dito que aquilo era só lama e barro, se calhar daí o nome. Eles vão-se afastando a pouco e pouco e acabo por ficar sozinho na descida para La Gitte. Um dos momentos mais fabulosos do percurso. Nunca imaginei passar aqui de dia. Simplesmente mágico. 



Deixo-vos um vídeo que ilustra bem o que é esta fabulosa descida bem como o Passeur de Pralognan. Uma maravilha alpina!


1m20s e 3m45s - Passeur du Pralognan. Dá para perceber porque queria passar aqui de dia.
2m13s - Descida para La Gitte. Aqui acho que também dá para perceber. Brutal!

Entretanto a dureza não dá tréguas e a noite cai a subir para o Col La Gitte. No vale tinham-me dito 2h30 até ao abastecimento Col Joly. Tínhamos deixado o ultimo abastecimento há 2 horas e cerca de 10 Km, faltavam agora mais 10 Km e mais 2h30!! Esta é outra das características desta prova. Poucos abastecimentos. É preciso planear bem a viagem!

Mais uma brutal subida, a pique em muitas zonas e depois uma falsa descida em montanha russa atá ao Col Joly. Muita dureza nesta zona, piso muito irregular, muita pedra, imensa pedra, subidas duras pelo meio. O abastecimento não estava longe...do olhar, porque tivemos de contornar todo o vale antes de lá chegar. Os Ultra Raptor mostravam a fibra de que são feitos. Não tinha trocado de sapatilhas na muda de roupa. E continuavam a fazer um grande trabalho. Foi duro passar esta zona.

Quase a chegar ao abastecimento encontro o Flávio, o Nelson e o Tiago num canto. Então?! Vocês aqui? O Nelson não estava bem e haveria de ficar a repousar um pouco no Col Joly. Ainda saí junto com o Flávio e o Tiago mas na descida para Contamines rapidamente os perdi de vista. Estava agora com 1h30 abaixo da minha previsão. A coisa estava a aguentar-se.

A descida vai dar à Notre Dame de La Gorge e depois daí é o caminho que já conheço até Contamines. Passo um abastecimento pirata de um bar, bem animado, onde me oferecem de tudo o que não é saudável e resisto bebendo apenas um sumo de laranja. No verdadeiro abastecimento fico um pouco de mais a recompor-me e a preparar-me psicologicamente para os 1200m verticais que faltavam, Já me tinham dito que a ultima subida, Col de Tricot era para arrasar com tudo. Uma parede de 600m verticais. Uma parede mesmo! Fico tempo demais e saio cheio de frio. Felizmente é a subir e passados 5 minutos já passou. Ainda assim continuo com 1h15 abaixo da previsão

Toda esta zona final Chalets du Truc, Col de Tricot e Bellevue deve ser lindíssima pois tem imensa vegetação, desnível, muita pedra, cascatas gigantes e até uma ponte suspensa, mas infelizmente não tenho capacidade para aqui passar de dia, muito poucos têm, portanto para nós só sobrou a dureza do percurso e os locais a pique e bastante perigosos, alguns com cordas, onde passámos.

Depois da brutalidade que é a subida ao Col de Tricot o estômago fecha-se. Numa parte teoricamente mais simples fico sem capacidade de correr. Não consigo comer nem beber, só de pensar nisso quase que vai carga ao mar. Quanto tento correr, a mesma coisa. Só me resta seguir a passo. Sinto-me fraco mas nem pensar em meter nada ao bucho. Acho que foi uma água gelada de uma ribeira que me soube tão bem como o mal que me fez. Acontece. Vou gerindo e forçando o andamento. Em Les Houches bebo umas goladas da água com gás que têm nos abastecimentos (que excelente ideia) e depois de uns valentes arrotos, acho que a fornalha voltou a carburar. A previsão para Les Houches dizia 5h30, passo lá às 5h22, Estava a desbaratar o meu pé de meia. Ainda assim ia conseguir atingir o objectivo pois tinha 1h30 para fazer os 8Km finais que são quase planos pela floresta, estradão até Chamonix. Veja-se em Les Houches a pujança do andamento :)


No caminho junta-se a mim um companheiro francês, que ao contrário de 99% dos franceses queria conversar. Estava mais forte que eu. Disse-lhe que estava mal do estômago para ver se ele seguia, mas o raio do homem obrigou-me a ir com ele. E lá fomos. Corremos quase tudo, só metendo a passo numa ou noutra subida. E foi graças a ele que recuperei alguns minutos e virei a TDS em 24h30.

Pelo caminho ainda me contou que estávamos em 240 e tal. Fiquei surpreendido. A prova não me tinha corrido assim tão bem. Achava que ia fazer uma prova médiazita, bem gerida, sempre sem stress. Mas pouco mais. Mas ainda deu para 250º da geral e um 17º do escalão. Oh la la!

Felizmente lembrei-me de mandar um SMS à Dora onde esgrafinhei "15 minutos". Estavam a preparar-se para as 7h mas ia chegar às 6h30. Tiveram de ir a correr mas tive uma recepção de rei, com as minhas princesas todas a vibrar.


Foi magique!

E foi esta a história da minha TDS. Percebi porque esta é A prova. Não tem 170Km, nem tem 2 noites sem dormir (até tem, porque não consegui dormir nada na noite anterior, só não estive a correr). Mas tem um piso destruidor, tem subidas muito mais brutais que o UTMB, tem 20Km entre abastecimentos que podem ser perto de 5h, depende do vosso andamento, é muito mais selvagem, os vossos amigos mal vos vão poder seguir, o isolamento é total e a experiência muito mais arrebatadora. Mas se têm o que é preciso, sem esquecer umas sapatilhas adequadas a este piso, então esta é A prova para quem gosta de montanha e quer sentir os Alpes de uma forma muito mais genuína. Não penso que devam começar por esta experiência. Os Alpes mais pacíficos já são por demais exigentes face ao que estamos acostumados por cá, quanto mais esta experiência extreme. Façam uma primeira abordagem à zona, num formato mais contemplador, que até pode ser trekking, para poderem desfrutar da TDS em toda a sua dureza. E se lá forem não se queixem. Desfrutem!



Uma nota final para a mochila da Grivel: qual mochila? :)

Características da TDS
- 120 km, 7250 m D+
- 6 abastecimentos com alimentos, 2 apoios com bebidas
- tempo do 1º cerca de 14h10
- tempo do ultimo cerca de  33h
- tempo limite 33h

Resultados 2015
- 1809 participantes
- 1214 finishers
- 595 abandonos

Classificação
- 250º em 1214
- 17º em 298 do escalão V2H
- 24h30


11 comentários:

  1. Parabéns! Mais um grande relato de um fantástico resultado!

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  2. Absolutamente espectacular!
    PARABÉNS CAMPEÃO!
    E que relato magnifico,
    Descobri que tenho uns pés de Cinderela! No meu caso ainda é pior pois trata-se de um esqueleto inteiro de Cinderela! :)
    Um abraço.

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  3. Parabéns pela excelente prova e entusiasmante relato. Eu que estava a pensar voltar aos Alpes, em família, para fazer a TDS já fico na dúvida. Não sei se a idade e a "cagufa" me autorizam a tal....

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    1. Podes ir Luis, mas vais avisado. Aquilo não é fácil de virar. Mas se fosse fácil não era para nós. Vai. Com calma tudo se faz. Além disso já tens uma no bucho sabes bem ao que vais. Leva uns bons pneus

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  4. É um perigo vir a este blog.. já me fez inscrever no MIUT e agora aparece-me com um post destes... Já agora, a mochila com pouca experiencia, portou-se bem? As Raptor pelos vistos passaram no teste, também são as que uso.

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    1. A mochila é uma maravilha. Excelente relação preço qualidade. Estava farto de carregar a água às costas. Assim a coisa fica mais equilibrada. Não é à toa que tem lá um simbolo que diz "Tor de Géants"... felizmente não sei o que isso é :)
      Os ultra raptor são fabulosos. Fã instantâneo! Nunca imaginei que pudesse não sofrer tanto dos pés.

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  5. Muito bom! parabéns por mais esta aventura, beijinho

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