segunda-feira, 19 de outubro de 2015

UTAX - A Lousã toda de uma vez nesta lição


Nota: Contem lições e dicas importantes


Por mais experiência que se tenha às vezes somos vítimas dos erros mais básicos. Por isso esta crónica é também uma lição para estudar e relembrar.

Se por um lado a experiência nos dá o conforto de irmos para a prova mais dura de Portugal continental com o espírito de missão de quem vai ter de encaixar mais uma ultra 100K no bucho, também nos atraiçoa.

Esta não é definitivamente uma prova para estreantes nesta distância. A Lousã é muito dura e para se desfrutar da experiência há que ir aos poucos. Provavelmente se forem de boa cepa até concluem a coisa no tempo limite mas com um preço demasiado alto. Há muita coisa para se entreterem por ali, antes de enfrentarem o boss do UTAX.

Partimos bem eu e o Rui. O plano era fazermos a prova juntos. Sem stress. Este ano já tenho a minha dose e estas coisas também cansam. Estou um pouco saturado de ultra coisas. Já não há épocas, intervalos para descanso, nada. É ir gerindo e descansando de umas para outras a fingir que servem de treino.

Nem 2 Kms, na saída de Miranda o tipo da mota engana-se e quem ia na frente segue atrás. Poucos metros durou mas o suficiente para o pessoal mais calmo seguir as fitas e o caminho correto. Grande granel, encaixa tudo uns nos outros. Os craques aceleram pelas coxias e tentam reposicionar-se na frente. Perco o Rui na confusão. Vou tentando chegar à frente e aproveito algumas subidas para recuperar posições. 

Chegámos à ribeira de Espinho, que estávamos a subir, ao contrário dos Abutres, e sigo com a Sofia Roquete o que é sinal que já estava mais coisa menos coisa no local correto, Contas feitas já em casa, passei em 62º em Gondramaz. Fico por ali a ver se o Rui aparece. No caminho passei o Luis Madeira que me tinha dito que o Rui não tinha passado por ele, portanto vinha atrás. O Rui não aparece e arranco devagar. 

Na véspera em conversa com o Vitorino Coragem perguntei-lhe o que era aquela descida a seguir a Gondramaz e ele explicou que íamos descer a outra ribeira mas só íamos fazer 500 m e depois voltávamos a subir para apanhar a pista de downhill para a Lousã.

Estávamos a sair de Gondramaz pelo estradão e aparece o Rui. Fixe. Seguíamos juntos com mais um casal. Ela era a 3ª da geral. Descemos para a tal ribeira e aviso-os que iríamos fazer 500 m e depois meter à direita para subir.

Aqui fica a 1ª lição.

1ª Lição - Segue sempre as fitas

Corolário 1 - Podes sempre seguir outras coisas que te apeteça, tipo placas reflectoras, placas indicativas do trilho, tudo o que quiseres seguir, MAS CERTIFICA-TE QUE CONTINUAS A SEGUIR AS FITAS.

Corolário 2 - És TU que tens de seguir as fitas. Nunca delegues essa tarefa nem confies em ninguém para a fazer por ti. Porque se o gajo não souber esta lição és TU que te vais tramar.

Aquela zona do trilho esta cheia de marcações refletoras, marcações de trilhos do Centro de Estágio de Trail de Miranda, etc. Com tanta coisa a reflectir por ali, em pelo menos 5 pessoas ninguém se lembrou de perguntar uma única vez: E fitas? Alguém está a ver uma única porra de uma fita?

De repente parecia que estava a escalar o Penedo dos Corvos, mas era de noite e pedra é pedra.... quando vejo as luzes de uma aldeia mesmo ali.... espera lá... isto não estava no mapa. Íamos subir e descer para a Lousã. GONDRAMAZ!!! De repente tudo fez sentido nos meus 3 neurónios. Não seguimos fitas, o trilho virou algures à direita, subimos ao Penedo dos Corvos e voltámos a Gondramaz. 4 km, 45 minutos perdidos e como se não bastasse, para a estocada final, tão cedo na prova em 45 minutos tinha passado toda a gente. Diz uma moça: bem vindos, juntem-se a mim sou a última. Verdade ou não foi um balde de água gelada que nos mandaram para cima. Acorda pá! Esta prova já acabou!

Voltar para trás à procura do erro era ainda mais estúpido do que o que tínhamos feito. Demasiado técnico. Lá aceitámos o convite e voltámos a fazer o mesmo percurso para perceber onde nos enganámos. Podia estar mais bem indicado? Podia. Podia não haver tanta porcaria pendurada por ali a reflectir? Difícil. Não fomos os únicos a cair no engodo mas as fitas estavam lá. À 2ª não falhámos.

Foi preciso mudar o chip e seguir atrás dos ultimos. Na subida ainda passámos alguns mas depois na descida para a Lousã, um single track de downhill havia pouco a fazer. Formavam-se filas ao mínimo obstáculo. Vimos muita gente que estava enganada na prova que se propôs fazer. E também ultrapassar à bruta para quê. Tínhamos quase 1 hora de atraso. Era outra prova que havia a fazer agora. 

Na Lousã encontrámos mais vítimas do engano. Chegámos em 220º quase no fim da tabela. Próxima paragem Cerdeira. Seguimos por trilhos do Louzan Trail. Não me apercebi que o Rui não vinha lá. O abastecimento numa fantástica casa de xisto e madeira da aldeia. Cheio que nem um ovo. Calor humano. Os óculos embaciam de imediato. Parecia o Mr. Magoo. Tiro os óculos e vejo o Hugo. Não estava a funcionar a prova e ia abandonar. Tento convencê-lo a vir connosco em modo desfrutar, nada. Já tinha tomado a decisão. 

Como, bebo, esvazio os ténis de pedras e quando procuro o Rui, nada. Que raio?!?! De repente lá aparece. Estava com uma dor na virilha que o estava a impedir de progredir. Na subida após o abastecimento a coisa não melhorou e separámo-nos. Em princípio iria abandonar em Povorais no Km 48. Que sina. Já o ano passado ficou pelo Km 50 por outros motivos. Não está fácil esta prova. 

Fico sozinho. Triste sina a minha. Sozinho e num sítio da classificação onde não conheço ninguém, não estou no meu ritmo, lá vou ter de gramar outra prova a solo. 

Depois de Povorais e de 2 belas canjas, já de manhã, subo ao ponto mais alto da prova e quase sou arrastado pelo vento, Rajadas seguramente na casa dos 100 Km/h, um trilho manhoso a subir e mesmo nas zonas mais brandas era impensável correr. O vento era tanto que era impossível prever onde os pés iam bater no chão. Qualquer rajada poderia arranjar um entorse ou um tropeção num tronco. Felizmente não estava muito frio. O meu relógio registou mínima de 16º o que parece impossível tal o frio que a ventania fazia sentir. Se estivesse frio a sério acredito que com aquele vento a prova teria de ser cancelada. Também acredito que com frio a sério haveria bombeiros e ambulâncias nos estradões desprotegidos das eólicas...

Eu lá ia prosseguindo na minha árdua missão. Seguia-se mais terreno conhecido de outros passeios, nomeadamente do habitual treino do amigo Vitorino. A descida para o Coentral, toda em grandes nacos de cascalho solto e depois mais descida até Castanheira de Pera, passando pela praia fluvial de Poço de Corga, que me traz boas memórias do verão de há 2 anos.

Se já vinha molhado e sem dúvidas para trocar de roupa na praia das Rocas, mais um local de fantásticas memórias de há 5 anos, uma chuvada no último km só confirmou tudo. Chego geladinho à praia das Rocas. Arranjo um cantinho e calmamente renasço do frio. Fracas condições. Sacos de troca espalhados por ali, balneário sem luz, chuveiros ali a acenarem para nós mas sem água quente, abastecimento num recanto onde 2 pessoas ao mesmo tempo já eram uma multidão. Sem pressa alguma ainda ligo à Dora a contar como as coisas estavam. Coisa rara nas minhas provas mas esta estava a ser uma prova atípica, talvez estivesse a estranhar. Procuro confirmar se o Rui sempre desistiu e fico a saber que o Marcolino desistiu, Ó desgraça. A coisa estava bera.

Enquanto me trocava o céu descarregava a sério. Assim que terminei a coisa acalmou. Olha, uma aberta. Siga. Mal passo a ponte da praia e era falso alarme. Começa a cair uma carga monumental. Bonito serviço. Vá lá que tinha o impermeável vestido mas mesmo assim fiquei um pinto. 

Nova subida dura, novo estradão de eólicas no topo. Chuva nevoeiro e um horrível vento lateral. Faltava descer até ao Talasnal num fantástico downhill onde os ultra raptor brilharam e eu ainda a conhecer os limites dos gajos nem acreditava na capacidade de agarre da coisa. Nitidamente ainda não tenho pés para a coisa :)
O Talasnal parecia uma urgência do Amadora Sintra nos piores dias. Só pessoal com a junta da cabeça queimada. Mal entro começa a chover torrencialmente. Não me posso demorar para não arrefecer ainda por cima vou ter de sair a chover. Falta subir ao observatório e descer para Miranda.

Sem grande história, mais estradões, mais eólicas, já não suportava o barulho das bichas a rodar, nem o raio do vento, Nem 5 minutos estive no observatório. Não havia nada para observar. Ainda saio lá de cima às 18h30 a pensar que fazia aqueles 20 Km em 3 horas, alguma margem para surpresas. A descida vai complicando pelo caminho. Estamos de novo em terrenos de Abutres mas a descer. Quando a coisa chega ao Cardeal com tanta lama a descer, lá vem trabalho a sério.

E é altura da 2ª lição.

2ª Lição - Não uses pilhas alcalinas no teu frontal XPTO com bateria de lítio

Corolário 1 - Vais-te tramar. Estás a contar com uma determinada duração que umas pilhas convencionais não suportam

Corolário 2 - Se o teu frontal permite usar pilhas de backup usa no mínimo as melhores pilhas recarregáveis de NiMH que encontrares

E em pleno Cardeal, mata serrada, breu total, desníveis e encostas de lama o frontal começa a piscar e a avisar-me: Já foste de novo!
Ca porra! Estou tramado com F maíusculo!!!
Vejo alguém com um frontal um pouco mais à frente. Rapidamente o apanho. Eu ainda tinha a bateria original com uma carga indeterminada. Já tinha feito 7 horas durante a noite e em Castanheira de Pera troquei por umas pilhas Varta novinhas. Homem prevenido, está bem... tramado. Não estou a ver nada que rime com prevenido que se adapte aqui....
Duraram 1h talvez.

O dilema era se voltasse a pôr a bateria quanto tempo duraria? Ainda faltava chegar a Vila Nova e depois mais 10Km que seguramente não seriam em estrada com candeeiros. Seguimos juntos. Se ele já não era muito expedito então a arrastar um gajo sem frontal... Sei lá quanto tempo demorámos a fazer a descida até Vila Nova, altamente técnica e toda em lama... que miséria. Ainda se juntou a nós mais um companheiro e parecia a procissão das velas, só faltava levarmos um andor.

Em Vila Nova volto a colocar a bateria e saio com o frontal no mínimo e a rezar. O trilho inicial já conhecia e pensava que íamos a Espinho e descer por onde subimos. Qual quê. Eu com o frontal no mínimo mal dava para ler um livro à noite na cama, mas não queria arriscar mais 1 lumen. Ficar outra vez às escuras naquele terreno nem pensar. Para o final estava guardado um arrozoado de reviangas e voltinhas, trilhos e trilhinhos, lama sem fim. Daqueles finais que estamos sempre a cheirar a meta, levam-nos até aos limites da cidade e voltam a meter-nos no trilho. As marcações já falhavam tanto como a paciência. Em minha opinião acho que são de evitar este tipo de traçados finais. As dificuldades devem estar ao longo da prova. Quando se mostra a meta a alguém já não há necessidade de esmifrar mais. O homem chegou caneco! Já chega!

E pronto. Quis contar-vos esta história porque acho que tem lições importantes. A ultima lição é que mesmo quando as coisas não correm bem é possível atingir outro objectivo. É só mudar o chip. Aqui já fica ao critério de cada um, Eu acho que é parte do desafio sabermos adaptar-nos, reconfigurar a máquina e lá vamos. Acredito que por vezes seja mais simples dizer "não estava bem" e não temos de escrever um artigo no blog cheio de dicas e lições. Por vezes há outras responsabilidades e expectativas. Mas eu funciono melhor assim. Tento transformar as dificuldades em desafios e lá vamos andando.

E foi assim que vivi o UTAX. Poderia ter corrido melhor?

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

UTAT 2015 - À descoberta da alta montanha e de outras realidades


Após ter feito por 2 vezes a prova dos 105 Km, este ano fui conhecer os outros dois percursos (42 Km e 26 Km) fazendo o Challenge (2 etapas em 2 dias). Gostei muito do desafio. Um excelente treino de alta montanha, passagem aos 3200 m, subidas exigentes, paisagens, como habitual, deslumbrantes. Aldeias isoladas ligadas apenas por trilhos que partilhamos com os habitantes nas suas habituais deslocações diárias. Caravanas de burros que transportam o que não se produz na aldeia, ou que sendo ali produzido se pretende vender noutros locais. A apanha das nozes a ocupar grande parte das aldeias. Uma viagem a um tempo perdido que já não faz parte sequer das nossas memórias. Outras formas de viver, despojadas de tantos bens materiais que não ousamos sequer imaginar,

Tão importante como participar em mais um UTAT, foi também a responsabilidade de apoiar a deslocação da comitiva portuguesa, quer antes da partida, ajudando a esclarecer questões, quer no local, na ligação com a organização, quer após a prova na, infelizmente, curta estadia em Marraquexe, que tive o prazer de organizar para toda a comitiva. 

Foi um grupo fantástico que apostou nesta viagem que é muito mais que uma prova de trail. Desde já agradeço, em nome da organização, a vossa participação. Acima de tudo sei que conheci novos amigos, o que não me admira nada porque é uma das características desta viagem e tão comum naquele país. Da minha parte e pelas vossas palavras percebo que desfrutaram de cada minuto o que me deixa imensamente feliz. O meu objectivo último é partilhar com todos a magia de Marrocos. Um país que nos cativa com a sua beleza natural e hospitalidade, com a sua atitude perante a vida, com o seu exotismo e que nos proporciona descobertas constantes. Acima de tudo destruir preconceitos parvos, ideias erradas e convicções absurdas. Marrocos é um país pacífico, totalmente seguro, extremamente tolerante e amigo. Podem circular livremente por qualquer rua de qualquer cidade a qualquer hora, não vão apanhar diarreia com a comida, os polícias não vos vão extorquir dinheiro, vão adorar a gastronomia local (o mesmo não podem dizer os frangos), e tanto outros mitos parvos que o desconhecimento produz e a vontade de não perceber propaga. Claro que, como em qualquer outro país e cidade, há criminalidade, há miséria, há doenças, há perigos, mas o que o país não merece são rótulos absurdos e redutores. Espero que um dia façam como eu fiz há uns anos, peguem na família, no vosso carro e partam à descoberta numas férias emocionantes para quem é apaixonado por conhecer outras culturas e não gosta de palas que o levam sempre aos mesmos sítios da treta, ano após ano, após ano. 

Este ano não sou eu que vos vou contar a história da viagem. Mas antes de passar a palavra e sem qualquer demérito para todos os participantes, que tiveram excelentes prestações e levaram o nome de Portugal bem alto, há 3 exemplos que creio que toda a comitiva concordará em enaltecer (e se não concordarem depois podem-me dar um calduço).

A Ana Ribeiro que mesmo debilitada e com grandes dificuldades, com o apoio do Luis Canhão, lutou e conseguiu terminar a sua prova. Esse querer foi premiado com um pódio e um primeiro lugar na prova de 42 Km. Bravo Ana. Um exemplo para todos. Quando queremos mesmo muito uma coisa, por vezes temos como recompensa muito mais do que desejámos. O teu 1º lugar foi brutal!

O Carlos Rodrigues que sonhou correr no Atlas e que concretizou esse sonho, Ainda longe de ser um arquétipo de atleta (o que acredito vá acabar por acontecer) conseguiu vencer a prova dos 26 Km, uma distância que nunca tinha superado. E foi ao Atlas demonstrar o que é resiliência. Amigo, já tens quase tudo o que precisas para vencer muitos outros obstáculos, O pouco que falta chegará, se continuares este caminho. Mas cuidado, o caminho é longo e duro! O que não é mau de todo porque dureza é o que a malta gosta.

E por fim o Filipe de Oliveira mostrou-nos o que é ser destemido. Apenas com o Hard Trail da Padela, que lhe conferiu os mínimos para participar nos 105 Km do UTAT, encarou o touro de frente e levou de vencida o bicho. Como todos lhe dissemos, fazer o UTAT com tão pouca experiência confere-lhe automaticamente a capacidade para enfrentar e vencer qualquer desafio em Portugal, para além de um ego gigantesco. E é totalmente merecido. Foste um valente amigo! Provavelmente não esperarias algo tão difícil (nem podias com a tua pouca experiência), mas a forma como desembrulhaste uma das provas mais difíceis de montanha, mostra que és tão ou mais rijo que as montanhas por onde andaste. Parabéns pela tua coragem! Grande exemplo. 

E agora tem a palavra a Filipa Vilar que melhor que ninguém vos vai contar a sua visão desta aventura. (e pensavam vocês que os meus textos eram longos heheheh)

Ultra Trail Atlas Toubkal: Day One - 29/9 (texto e fotos de Filipa Vilar)


 
Às 15h, o avião TP 1454 aterra no aeroporto Marrakech-Menara com 14 portugueses a bordo. É um aeroporto pequeno e simples, sem mangas de embarque.
Dirigimo-nos para o posto de controlo com o visto de autorização de entrada preenchido e aguardamos pacientemente que este seja validado. Quarenta minutos após a aterragem reunimo-nos com o membro da organização que nos veio acolher e encaminhar para o transfer que nos levará ao coração do Atlas.

A viagem é para Sul, em direcção a Oukaiimeden, com paragem no centro alpino francês (CAF), onde pernoitaremos 4 noites. A estadia neste refúgio de montanha era a alternativa "de luxo" a pernoitar em tendas no meio do vale desta estância de ski.
Quando chegamos dirigimo-nos ao edifício e somos divididos em duas camaratas (C14 e Ikkis 14). Depois de instalados encontramo-nos na recepção e descobrimos que o CAF disponibiliza gratuitamente rede Wi-Fi. Ora o que fomos descobrir...

Pelas 19h vamos explorar a área. Telemóveis em punho captam paisagens soberbas com o cuidado de enquadrar tudo o que a vista alcança na imagem.
Findo o reconhecimento, dirigimo-nos para as gigantes tendas que se encontram posicionadas em frente ao CAF, no meio do vale. Uma “passadeira vermelha” guia-nos para uma “cerimónia sofisticada”…o nosso jantar! A decoração é muito simples. Uma mesa gigante no fundo da tenda onde são colocados os pratos e loiças, 40 mesas redondas com capacidade para 8 pessoas, gigantes carpetes de tons avermelhados e 6 caloríficos. Tanto as mesas como as cadeiras estão “forradas” num tecido branco bordado com motivos florais.
Sentamo-nos em duas mesas contíguas e aguardamos que os auxiliares de apoio à cozinha tragam o banquete. Primeiro, um panelão de sopa harira, seguido de arroz com frango e legumes. Um pão grande e redondo, feito com uma farinha desconhecida mas saborosa, acompanha a refeição.
Regressamos ao CAF e dedicamo-nos ao vício. Por fim, o merecido descanso.



Ultra Trail Atlas Toubkal: Day Two - 30/9 (texto e fotos de Filipa Vilar)





As hostes agitam-se na camarata Ikkis incitando-me a levantar. Que noite tenebrosa! 2 panelas de pressão em pleno funcionamento deram-me cabo do sono.
De manhã o ritual seria sempre o mesmo…descer do beliche, calçar, apanhar a roupa a vestir (previamente escolhida e disposta num móvel em madeira dividido em 16 quadrados), segurar na bolsa com produtos de higiene e na toalha e dirigir-me ao wc/duches. Descobri que as mulheres tentavam manter a privacidade, resguardando-se numa zona com apenas dois duches e separada com uma cortina. A água era excessivamente quente, de resto, as condições de higiene e instalações sanitárias eram suficientes.
O pequeno-almoço pecava na variedade mas era de qualidade (chá marroquino, chá preto, café, pedaços de pão, doce de figo, doce de morango, doce de alperce, mel, figos secos e tâmaras).
A etapa seguinte era efetuar a acreditação nas provas e o controle do material obrigatório. Nós estávamos à entrada da tenda às 9h como anunciado, mas a organização só iniciou os procedimentos pelas 10h.
Um controlo bastante rigoroso, contrastante com a despreocupação em seguir os horários estipulados aliado a falhas de comunicação entre os voluntários e membros da organização.
Depois de “matar o vício” comunicacional com o Mundo, o grupo reúne-se e vamos fazer um passeio com o intuito de ambientar o corpo à altitude, vencer o ar rarefeito que teima em dificultar a respiração e conhecer os trilhos de saída e de chegada das diferentes provas.
Os almoços não estavam incluídos no pack da prova, como tal, almoçamos numa tasca da vila, uma bela tajine.
E resto da tarde foi puro lazer!
A competição ocupa um lugar quase primordial na rotina dos atletas que passam o ano a saltitar entre provas e países. Mas a competição não era o meu foco. Era sim desbravar o Atlas, contemplar um palco de beleza quase selvagem e usufruir do trail no seu estado mais puro.
Um mês após um problema de saúde extremamente grave ir fazer o Challenge do Atlas (42K 26K) poderia ser considerado insano mas, na realidade, eu estava a ouvir o corpo. Ele dizia-me para tentar! E eu sentia que era capaz.. Não era a mesma Filipa que um mês antes tinha aterrado no Aeroporto da Portela nem tão pouco o “corpo débil e enfermo” que vagueava por Chamonix.
Durante este mês recuperei a força extinguida pela doença, tive imensos cuidados alimentares, efetuei a medicação prescrita, repus as horas de sono, fiz treinos leves e fui-me mentalizando que estas duas provas seriam um teste, uma tentativa, e, se por algum motivo não conseguisse concluir o Challenge, a experiência valia por tudo.


Ultra Trail Atlas Toubkal: Marathon d`Atlas 42K D+2600 - 1/10 (texto e fotos de Filipa Vilar)

5H55: Tensão no auge, últimos preparativos...
6H: Soa a partida! Partimos em direção à montanha com as estrelas a vigiarem as nossas passadas. Os atletas dos 105, do Challenge e dos 42...todos juntos. Estava um frio de morte e o vento não ajudava a festa. Seguimos em estradão até ao K11 com D+530. Perto dos 2800 o dia começa a clarear e o sol a nascer. A visão é magnânime! Tons laranja forte contrastam com as diferentes tonalidades das montanhas. As mais próximas castanho escuro num degradé até as mais distantes. Sigo constante e forte. Faço os 11K em 1h35 com trote em alguns troços. Chegada ao primeiro controle é hora de descer 9K com D+1000. Os voluntários são uma animação e incentivam os atletas. Na descida, o sol começa aquecer o corpo. Ainda assim não retiro as camadas, apenas as luvas e buff. Inicialmente seguimos em estradão com muita pedra solta, até a separação das provas. A minha segue pela esquerda e passo por uma aldeia “escavada” na montanha. Atravesso caminhos de cabra, trilhos estreitíssimos, singles, uma zona arborizada e o rio Ourika num sobe e desce adorável! Cumprimento todos os locais e eles respondem afavelmente: "Ça vá? Fatigué?".
Homens, mulheres e crianças afastam-se para nos dar passagem. Locais à parte! Ainda me oferecem nozes acabadas de apanhar e tudo!
Chego ao primeiro abastecimento dos 20K com 3h de prova certinhas! Preparo-me para demorar! Ataco os alperces e os amendoins salgados. Peço para atestar os soft flask e tiro o softshell. A senhora não está interessada em ser rápida. Conversa e esquece-se de mim. Solicito alguma urgência e fica indignada. Com tudo isto demoro 7 min. Sigo. Não gostei muito do abastecimento. Muito fraco. Tinha apenas água, coca-cola, banana, batatas fritas, alperce seco, amêndoas e amendoins. Quando estou a sair vejo o Paulo Jorge descer. A minha subida é uma parte da descida dos 105K.
Encontro atletas com quem me cruzei no caminho, atletas que conheço do CAF, o Filipe e o Ricardo Diez e ainda o Eduardo e o Nevile um pouco mais acima. Todos fortíssimos! Sigo cheia de energia! Uma subida de 8K com D+1300 (K28 D+1785) onde atinjo o altitude de 3200 no colossal Tizi n´Tacheddirt!!! Woww!!! A subida é potente! Extremamente técnica, com diferentes graus de inclinação e num trilho com biliões (quantos biliões...) de pedras, pedrinhas, pedregulhos, rochas, areia...O calor começa apertar! Tenho 1,5 lt água...não me parece que vá chegar!
Começo a ouvir uma cascata! Boa! Paro 2x para beber água e em uma delas atesto o soft flask. A água é tão fresca!!! Tive o cuidado de apenas beber água de uma zona mais alta onde não vejo cabras a pastar. Outros atletas fazem o mesmo. Nunca páro. Sempre a subir no meu passinho.
Desde o início da prova que ingiro algo de hora a hora. E resulta na perfeição. O corpo nunca perde energia e consigo manter o ritmo. No topo dos 3200 encontro o posto de controlo médico. Demorei 2h30 a chegar. Agora seguem-se 6K com D-1000! Técnico! Agressivo! Num trilho muito estreito e onde a areia me faz derrapar muitas vezes. Por 2x quase que resvalo. A 3K do abastecimento, numa zona muito perigosa e que me faz saltitar bastante encontro um grupo de caminhantes. O último avisa os da frente que vou passar. Impecáveis! Chegam-se todos para o lado. E começam a aplaudir, dar força, desejar sorte!! Uma festa!! Nem sabia o que dizer! Só sabia dizer "merci!!!" Adorei aquele publico! Tentaram trotar comigo e ainda conseguiram uns metros. Depois deixaram-me seguir e disseram "you are the first"!!!
Atravessei uma estrada e desci novamente em trilho. Medonho!!! Nem havia quase trilho! Areia para derrapar! 1km bem bem complicado. MIUT? Comparado com esta zona é super seguro! Desemboquei na vila e segui por o caminho até chegar ao segundo abastecimento sito em Tacheddirt. Fizeram uma festa! Demoro 1h30 a fazer esta descida. Comi novamente alperces e amendoins. Atestaram os soft flask rapidamente, perguntaram se queria atestar o camelback e ofereceram queijo e/ou fiambre. Priceless!! O queijo não estava a mostra Foram super atenciosos, cuidadosos e eficientes. Informaram-me que no dia seguinte passaria novamente por ali. Despedi-me "see you tomorrow"! Subi 5 degraus e comecei logo bem!! Uma subida quase vertical! Bom...na verdade seriam 5K com D+600! Demolidora a subida! Calhaus e rochas para trepar!! Tipo Km vertical mais muito mais técnico e num trilho super estreito! As montanhas são rochas autênticas! Agrestes, totalmente expostas ao sol, arenosas e áridas. Esta subida coloca-nos em contacto com a sólida Jebel Anggour (de 3614 metros) mas ficamos pelos 2960 Finda a subida nem queria acreditar! Passei no controle e dei o número de dorsal. Mais umas fotos. Pronto...só faltavam 6K a descer até a meta com D-400. Inicialmente muito técnico nem trotar conseguia. Depois 1.5K de estradão para voar mas as dores no joelho esquerdo não deram tréguas e trotei em câmara lenta. Volto a entrar num trilho técnico mas no qual consigo fazer um trote nalgum troços. Os caminheiros são fantásticos! Deixam sempre passar e dão imensa força. Chego a uma zona plana. O vale tem um trilho pedregoso e o rio segue pelo meio da nossa rota. Faltam 3K. Bora lá correr/trotar menina. Consigo fazer esta proeza até a meta. Nem queria acreditar! Terra molhada em que afundo as sapatilhas, trilho corrível mas com pedrinhas. A 1.5K começo a perceber por onde vou chegar. As marcações são muito espaçadas e não dão confiança. Ocorreu-me N vezes parar e tentar perceber por onde seguir. As marcações são com uma tinta azul na rocha (há imensas rochas mas as marcações são muito espassadas e insuficientes). Avisto ao fundo as casas de Oukaiimeden e mais à frente às bandeiras vermelhas e o pórtico da meta. Sigo constante e umas lágrimas escorrem pela face. Felicidade pura!! Consegui! Venci a altitude, a caixa torácica aguentou, o coração conseguiu bombear o sangue que tinha e as pernas nunca falharam. Uma epopeia! Um Challenge sem dúvida! A 500 mts ouço o speaker dizer que se aproxima uma atleta feminina e colocam uma música para mim! Brutal!!! Nunca tal tinha acontecido. Uma música para a minha chegada! Ver o pórtico...atravessá-lo...priceless!!!
Com 9h02 totais terminei 42,67K com D+2385. Orgulho!!!


Ultra Trail Atlas Toubkal: Virée d´Ikkiss 26K D+1400 - 2/10 (texto e fotos de Filipa Vilar)

08h45: Desço com o Paulo Pires para o pórtico de partida. Esqueci-me dos bastões! Volto a correr para os ir buscar. Reencontrámo-nos e seguimos até à linha de partida. Conversámos com os restantes atletas do grupo que nos vieram acompanhar e com o Eduardo e Neville que tinham terminado a prova dos 105K.

Às 9h soa a partida. Corremos quase em plano 3K. Uma autêntica tortura! O coração quase a sair pela boca, os músculos das pernas acusar o empeno do dia anterior...manter a constância foi um teste a minha resistência mental! Até que finalmente o trilho começa a subir e posso dar uso aos bastões. Os meus salvadores!
A subida era a descida do dia anterior. 5K com D+400 divididos em 3 níveis. Um trilho estreito arenoso mas de andamento fácil, um trilho pedregoso mais inclinado e por fim um trilho com rochas e troncos para escalar um pouco mais. No topo da subida encontro o primeiro posto de controlo. Dou o número de dorsal, poso para a foto e começo a descer. Uma descida de cortar a respiração, rodeada por imponentes montanhas de cor ocre. Desço a medo porque a inclinação é acentuada. Sou ultrapassada por vários atletas mas não me importo. Prefiro ser cuidadosa e regrada na descida porque a partir dos 17K, necessitarei de toda a força para atingir os 2800 metros sem fraquejar. 4K de uma descida exageradamente técnica e "perigosa" culminam num trilho muito estreito mas corrível. Dou asas as pernas. Chego ao segundo posto de controle (último posto de abastecimento do dia anterior) e sou informada que o abastecimento é a 5K. Duvido logo. O meu GPS contabiliza 10K e segundo o perfil da prova, este situa-se ao K16.5. Sigo sempre a correr. Yeahhhh!!!! Atravesso duas aldeias, cumprimento todos os residentes invejando-lhes a vista, a pacatez, o despojo do materialismo, a simplicidade e constato (novamente) a inacessibilidade das gentes. A terra árida, povoada por pequenas matas, com grupos de cabras a roer o chão, transporta-nos para clássicos do cinema, cujos protagonistas encarnam vidas passadas em locais ermos, palco de aventuras e trilhos pedestres, mas na realidade, os protagonistas deste filme somos nós!
Contemplo sobrados coloridos pelas vestes que ao sol secam. E ao K17 encontro a tenda branca onde os voluntários calorosamente aguardam pelos atletas.
Cinco crianças estão a chegada do abastecimento a bater palmas e a gritar por nós. Maravilhoso!! O fotógrafo capta este momento. Eu a chegar, sorridente e os miúdos em festa. Para eles deve ser um acontecimento único no ano, ver tantos atletas, roupas diferentes, mochilas, bastões, os nossos procedimentos, rituais...a azáfama.
Este abastecimento permite-me tomar fôlego antes de prosseguir, hidratar bastante e ingerir suficientes calorias, afinal vou emergir em altitude numa subida difícil de "abarcar". Duas mãos cheias de alperces e uma de amendoins. O voluntário enche-me dois copos de água para ajudar.
E agora sim, vai começar a verdadeira dureza. 8K D+1000. A início um estradão largo que desemboca num trilho técnico. A paisagem é impactante! Areia fina, rochas escuras (e até lilases), troncos de madeira (alguns formam socalcos/degraus)...uma montanha que se eleva dos 2800 metros de profundidade, um oásis de vida berbere e trilhos vertiginosos.
Não temos medo de nos aventurar naqueles colossos? De assentar os pés em zonas quase sem trilho? Claro que sim! Todos nascemos com medo e é bom que o tenhamos. Por isto é que nos aventuramos. Porque conseguimos superar o medo, desafiar a vida, atingir um estado de plenitude imensa, tornar-nos "mais respeitáveis" aos olhos dos outros. Mas houve momentos em que pensei “e se sucedesse algo?...” Um trilho em que só cabe um pé a frente do outro…mete respeito!
Avisto as enormes bandeiras vermelhas. Estavam cada vez mais perto! Estas indicavam que o fim da subida estava próximo.
A experiência acumulada destes dois dias e a estrondosa força que descobri que residia em mim eram o meu ópio! Avançava forte e constante, capacidade de alerta no máximo e mantinha-me alimentada e hidratada, o que me permitiu passar mais de 10 atletas. A 500 metros de atingir o cume, um atleta senta-se no chão, exausto. Sinto-me impelida a dar-lhe força. E no meu inglês digo-lhe que o final da subida está mesmo ali, que ele a está a ver, que tem de pensar que em poucos minutos vai atravessar a meta, vai poder comer cuscuz ou pasta e que vai tomar um banho quente e aromático…e surte efeito!! Fico radiante!! Levanta-se e segue-me deveras debilitado.
Finda a subida encho o peito de ar e de orgulho. Troto na descida e olho para o relógio. Vou chegar mais tarde do que previ mas chego bem. A uns metros da meta, a equipa portuguesa aplaude-me, assim como, atletas sentados nas esplanadas e os locais. Chego à base e sou engolida por uma grotesca sensação de missão cumprida.
25,86K terminados em 5H26 com D+1380


Ultra Trail Atlas Toubkal: Day Five - 3/10 (texto e fotos de Filipa Vilar)

Se o pequeno-almoço dos dois dias de provas nos brindou com uma novidade: a banana, no último dia o espanto era ainda maior! Crepes!! Divinais!! (um pouco açucarados demais para mim mas ainda assim, deliciosos!).
Pelas 7h50, o grupo português reúne-se na receção do CAF e encaminhamo-nos para o autocarro que nos levará de volta a Marraquexe. Antes de subir para o autocarro faço uma pausa como que a saborear a recordação. Sinto-me num espaço sideral! De outro planeta!
A meio da viagem o autocarro tem um problema mecânico e somos forçados a parar à beira da estrada. O condutor tenta resolver a situação mas ao final de meia hora percebe que não é possível e solicita ajuda. E agora? Quanto tempo teremos de aguardar por outro autocarro?...
2h foi o tempo que aguardamos. Entretanto duas voluntárias que seguiam no autocarro, desesperadas com a hora de embarque, pedem boleia a um taxista. Quase ao mesmo tempo chega um jipe 4x4 para levar mais atletas para o aeroporto. Continuamos à espera que nos venham buscar…35 minutos depois chega um mini bus de 14 lugares e encaminhamo-nos todos afoitos para o mesmo. Mas, dois atletas estrangeiros e o vencedor do ultra trail e sua família ocupam 6 lugares. Não existe espaço para todos…desolador!
Apesar deste percalço, mantemo-nos "como equipa" e aguardamos a chegada de um transporte que permita que os 14 sigam juntos para Marraquexe. A manhã estava perdida! Enfim…enquanto aguardávamos, a galhofa imperou! Por fim, chega o transporte para “nos salvar”.
A carrinha pára na praça central e desperto do meu cochilo matutino. Está um bafo! Ainda ensonada vou buscar a minha samsonite.
14 Portugueses, em fila indiana, rumo ao endereço de um hotel de charme e qualidade, renovado recentemente, que o Paulo Pires fez o favor de arranjar. A 3 minutos da praça mais mediática de África, união e sintonia ao estilo marroquino aliado a uma decoração moderna e possante. O hotel está por nossa conta.
Depois de instalada, dirijo-me ao terraço. Que vista de sonho!
Entretanto o estômago dá horas, por isso, há que fazer uma paragem obrigatória. Dirigimo-nos para as portas de um dos melhores endereços gastronómicos da cidade. A carta apresenta vários clássicos marroquinos e propostas arrojadas ao paladar. Finda a refeição, vagueamos agora com toda a calma do mundo pela cidade primitiva.
Os sorrisos que nos brindam são uma mão cheia de boas recordações.
Marraquexe, a "cidade vermelha" sita no sopé norte do Alto Atlas, é um caldeirão fervente de etnias, religiões, cores, nacionalidades, estratos sociais, comerciantes, sons, cheiros, artefactos, vestes, animais, especialidades alimentares, meios de transporte, hotéis, bancas de rua, frutas...
O canto hipnótico dos altifalantes das mesquitas, muralhas e habitações de tons ocre, hotéis a cada esquina, azulejos que decoram as entradas das casas e os pátios interiores, candeeiros arco-íris, uma poeira suspensa no ar...esta cidade é um íman exótico que pulsa os sentidos.
A parte antiga da cidade, vulgo Almedina, são ruas pelejadas de lojas e comerciantes de rua com artes e ofícios tradicionais marroquinos. Desde bijuteria, tapetes e carpetes, tecidos costurados ou bordados, cerâmica e louça berbere de cores, formas e decorações exuberantes, peças esculpidas em madeira, objetos em metal com rendilhados, esculturas, pinturas figurativas, velharias, livros de literatura marroquina imersos em pó, calçado em bico, artigos em pele, blusões de design quase exclusivo, telecomunicações...Há lojas que mais parecem exposições...um incrível espólio marroquino! Nas ruas, uma confusão de pessoas, bicicletas, motoretas e carroças ameaçam, constantemente, a segurança dos peões! Andamos em ziguezague a tentar sobreviver a esta aventura mágica. Uma motoreta apita de um lado, passa um bicicleta a toda a velocidade do outro, aproxima-se uma carroça cheia de fruta, uma banca de pão no meio da rua esburacada, turistas que param bruscamente ao chamamento do comerciante...
A praça mais animada e movimentada de África – Jemaa el-Fna – é uma insana loucura! Encantadores de serpentes, músicos, acrobatas, contadores de histórias, dançarinos, tocadores de instrumentos (do mais banal ao desconhecido, tocam músicas barulhentas e extravagantes) e macacos amestrados animam durante o dia, onde todos os sentidos são apelados ao consumo desenfreado. E ao final da tarde, quando o sol se começa a recolher no horizonte, o coração de Marraquexe vibra intensamente. É então que surgem dezenas de restaurantes em bancas no meio da praça e todos reclamam ter a melhor cozinha da cidade. Mas é no Chez Aicha, que descobrimos uma verdadeira instituição gastronómica: uma cozinha variada e fortemente condimentada, com o típico cuscuz, a famosa tajine, a sopa harira, a pastilla, o merguez e o thé à la menthe.
Esta viagem jamais será uma memória remota por estas paragens...
O UTAT pode estar ofuscado pelo brilho mediático de lugares como Chamonix, Cortina, Zegama, Pirinéu mas quem lá vai descobre uma terra de sonho, uma relíquia marroquina que não se compra com dirhams, a pureza do trail, o vital esforço dos voluntários, um coração árido e ocre que nos impele a voltar.
A receita e o retorno mediático desta prova, que está no mapa das provas mundiais mais duras pela dureza do piso, altitude, condições atmosféricas e capacidade de adaptação a uma autonomia quase total, são diminutos comparativamente a provas como UTMB e LUT. As experiências e vivências são igualmente diferentes.
Em cada viagem há um prazer no planeamento, uma sensação de prolongamento…a viagem começa a ser vivida antes e ainda temos o durante. Mas esta…assumo dizer que deixará mais “marcas”...será sempre uma viagem exploratória em que se formou uma equipa de 14 pessoas cheia de energia, boa disposição, cordialidade e que partilharam momentos únicos, momentos que muitos mortais nunca experienciarão e, caso lhes contássemos, provavelmente não entenderiam a magnitude do que por lá se viveu. Mas nós sabemos…nós sentimos…e iremos sempre recordar. O “poker face” de cada um denunciava o que nos ia na alma! Todos formos campeões e isso é um feito motivo de grande satisfação.
Um brinde a momentos destes!


Ultra Trail Atlas Toubkal: Day Six - 4/10 (texto e fotos de Filipa Vilar)



O despertador não precisa de tocar porque o corpo acorda uns minutos antes das 6h. É o dia da partida...
Às 6h40 o grupo reúne-se no terraço para tomar o último pequeno almoço em Marrocos.
O dia ainda não nasceu...estamos na "penumbra" alumiados por coloridos candeeiros...
À hora combinada somos encaminhados para o táxi e 20 minutos depois de iniciar a viagem chegamos ao aeroporto.
Efetuamos o check-in, preenchemos o visto de saída, atravessamos o controlo (mulheres numa fila e homens em outra) e por fim, atacamos as lojinhas com o intuito de gastar os últimos dirhams.
O voo TP1453 parte com algum atraso, algo que nos habituamos em Marrocos. Hehehe!!
Assumimos os nossos lugares e voamos de regresso a casa.
Enquanto aguardamos que as malas cheguem ao tapete 7 combinamos novas aventuras, trocamos impressões sobre a viagem, definimos objectivos para o calendário do ano seguinte...
Até que cada um segue o seu caminho...o saudosismo bate à porta...

Há o momento de chegada
E o instante de partida
Quanta vida já vivi
Quanto resta a ser vivida?...
Quanto resta não interessa...interessa sim vivê-la!!!

Obrigada a todos os 13 com que partilhei uns sublimes 6 dias! O nosso grupo era fantástico! A boa disposição e a contagiante energia reinou!

Paulo Pires, não posso nem quero deixar de mencionar todo o trabalho, cuidado, atenção, preocupação e gestão que empregaste nesta viagem. Um ENORME obrigado e PARABÉNS!
Ficamos à espera da próxima.

Fábio Dias, obrigada pelo teu acompanhamento na minha recuperação.
Rui Runa, obrigada pelos conselhos alimentares para a prova.

Agora é tempo de recuperar e manter "os cavalos" quietinhos. Hehehe

FIM

Obrigado por esta magnífica reportagem Filipa!!!!