UTAT 2012 - 105 Km de Jbel Toubkal
O "pequeno" Bombardier CRJ1000 de 100 lugares tinha acabado de aterrar em Marrakech após uma surpreendentemente tranquila e silenciosa viagem desde Madrid. Que diferença, para melhor, dos tradicionais Airbus A320, quase sem espaço para as pernas e muito mais ruidosos.
Descemos para a pista onde nos esperava o calor seco e o sol forte Africano. Em Marrakech os aviões param em frente ao terminal, mas as mangas são virtuais e os passageiros seguem em fila indiana pista fora.
Estava consumada a nossa 4ª entrada em Marrocos, a primeira por via aérea e a primeira para algo que não fosse apenas desfrutar pachorrentamente do modo de vida marroquino.
Estava consumada a nossa 4ª entrada em Marrocos, a primeira por via aérea e a primeira para algo que não fosse apenas desfrutar pachorrentamente do modo de vida marroquino.
As 3 ultimas visitas a este país magnético, em que não compreendemos totalmente a força que nos atrai, já somavam mais de 30 dias e mais de 6.000Km. Esta foi uma das razões porque foi relativamente simples, quer para mim quer para o Luis, partirmos para esta aventura marroquina. Claro que o preço extremamente acessível, quer da inscrição (que inclui estadia), quer das viagens, bem como o conceito e a simpatia da organização, onde estava bem patente a tradicional hospitalidade e simpatia, ajudaram muito na tomada de decisão.
Tal como nos tinham prometido, só tinhamos de chegar ao aeroporto de Marrakech. A partir daí estávamos por conta deles até nos devolverem ao aeroporto no Sábado após a prova. Marrakech está a cerca de 450m de altitude num planalto encostado à cordilheira do Atlas e a carrinha que nos levava montanha acima teria de fazer cerca de 70Km e subir até aos 2700m onde se situa a aldeia, estância de sky no inverno,
Oukaimeden. Ao longo da subida os cerca de 30ºC de Marrakech esfumaram-se e aguardavam-nos talvez uns 12ºC ou menos à chegada, pouco menos de 1h30 depois à porta do CAF, um albergue de montanha pensado para acolher os trekkers e os amantes da neve, agora com uma frequência não muito diferente do habitual.
Depois de levantar o dorsal e esclarecer todas as dúvidas, estávamos prontos para desfrutar do resto do dia, instalarmo-nos na nossa camarata e descobrirmos os cantos à casa. Camaratas espalhadas pelo edificio, umas maiores outras mais pequenas, uma casa de banho comum e um ambiente onde toda a gente rapidamente se sentia em casa. Tudo estava pensado e a meia pensão garantia-nos o descanso de apenas termos de comparecer na zona das tendas montada para garantir a logística dos jantares e dos pequenos almoços. Os almoços estavam por nossa conta e a aldeia tinha meia dúzia de "restaurantes" típicos de Marrocos onde por pouco mais de 3-4 € por pessoa se pode desfrutar de uma refeição completa de Tagine.
Se no primeiro dia a hora a que chegámos não permitiu grandes passeios antes que a noite e o frio se instalassem, já no segundo dia a coisa seria totalmente diferente. De manhã um passeio pela zona, subir aos 2800m, inspeccionar os ultimos Kms da chegada, experimentar a sensação de altitude e o cansaço que se instala de forma muito mais rápida. À tarde descansar um pouco e deixar tudo pronto para acordar às 4h30 no dia seguinte e seguir para o pequeno almoço logo antes de partir.
Ao longo do dia ainda houve tempo para analisar um pouco o traçado com outros companheiros e discutir tempos e estratégias. Já trazia algumas dúvidas e pude confirmar que as dificuldades se confirmavam:
- tudo indicava que iria passar aos 3500m em plena noite. Frio? Solidão? Dificuldades? Marcações?
Se para a 1ª não havia solução, a 2ª colocava mais duvidas. A que horas chegaria ao Km 68 (reabastecimento antes da grande subida)? Faria sentido esperar um pouco pelo nascer do dia para passar de dia aos 3500?
Para ajudar, o Dawa Sherpa tinha-me dito na véspera que a prova era relativamente simples com subidas não muito íngremes, tirando a descida dos 3500m que era extremamente difícil e perigosa...
Mas não havia volta a dar. Não fazia sentido esperar pelo nascer do dia para passar aos 3500 e chegar lá de dia não estava ao meu alcance. Portanto seria passar o mais depressa possível.
Atendendo aos tempos do ano passado e à conversa com os meus companheiros concordámos que 28h seria um bom tempo máximo para concluir a prova. Fiquei com uma boa ideia das horas a que iria passar nos principais pontos. Agora era assistir ao desenrolar da prova e ir verificando como estava a correr a coisa face aos tempos pensados.
Às 4h30 a camarata começou a ganhar vida. Desço do beliche e o André chama-me e aponta pela janela para as bandeiras junto às tendas, "Regarde le vent. Ça souffle!" As bandeiras enormes ondulavam completamente esticadas por um vento fortíssimo. "C'est pas bon, ça" Mais uma chatice. Mas pelo menos não estava a chover, embora estivesse previsto um céu carregado com possibilidades de trovoada.
A poucos minutos da partida o Luis saca da bandeira portuguesa e saímos da tenda para fazer uma ultima foto juntos com a bandeira, ultimamente tão mal tratada, tal como a república. A organização apercebe-se e filma o momento que faria parte do filme oficial da prova.
Às 6h 300 trailers estavam prontos. O dia ameaçava nascer e tal como previmos o frontal era desnecessário. A hora tinha mudado no fim de semana anterior e às 6h já há um lusco fusco que permite ver o terreno perfeitamente. O traçado era comum com a prova dos 42Km até ao Km 20, primeiro abastecimento. A partir daí o pessoal dos 42Km ia começar a sofrer e o pessoal dos 105Km tinha mais um bónus de rolar até aos 31Km.
Já me tinham avisado várias vezes para não gastar muita energia nos primeiros 30Km porque depois desta marca é que a prova ia começar. E assim aconteceu. Os primeiros 11Km são feitos num estradão que serpenteia montanha acima. Vamos subir dos 2700 aos 3000m. Uma simpática subida que permite correr aqui e ali, obrigando a poupar forças sempre que a inclinação aperta. Os 6Kg da mochila e o cansaço que se instala rapidamente fruto da altitude, recomendam a preservação de energia.
Depois de passarmos aos 3000 metros segue-se uma infindável descida de 10Km até aos 1700m. São muitos Kms de forte inclinação e perto da base os quadris já acusam o massacre, ainda por cima com o peso extra às costas. Quem pode acelera quem não pode vai gerindo a descida.
Depois de passarmos aos 3000 metros segue-se uma infindável descida de 10Km até aos 1700m. São muitos Kms de forte inclinação e perto da base os quadris já acusam o massacre, ainda por cima com o peso extra às costas. Quem pode acelera quem não pode vai gerindo a descida.
Ao Km 20 surge o 1º reabastecimento. Frutos secos, liquidos, bananas, salgados. Tempo para alguns ajustes no equipamento. Avisam-me que o calor se vai instalar e que vamos começar a subir. Opto por passar ao modo t-shirt. Embora não houvesse sol naquele vale também não havia muito vento pelo que qualquer esforço nos aquecia rapidamente.
Até ao Km 30 seguimos por um vale juntamente com um rio, subimos às aldeias, descemos às hortas. É altura de apanhar as nozes. A população vareja as árvores, os miúdos limpam o chão de folhas e catam as nozes do chão. Todo o vale está cheio de vida que se entretém a colher o que a terra dá. Salam Aleikum, vou cumprimentando todos com que me cruzo. Alguns respondem Aleikum Salam, outros respondem com algo que me parece um incentivo para a prova. Os míudos, muito mais desinibidos, riem-se e ficam a comentar o facto de eu os ter cumprimentado em árabe, provavelmente riem-se da minha pronúncia parva.
Um miúdo pede-me Dirhams mas grande parte deles apenas quer um high-five. Ficam radiantes de ver estes doidos que atravessam a sua aldeia a correr. Cores berrantes e garridas como eles tanto gostam. É uma festa na aldeia. As galinhas bicam aqui e ali indiferentes ao frenesim. Os menos acostumados com a realidade dos berbéres no Atlas fotografam a torto e a direito maravilhados com o exotismo e surpreendidos com a pobreza das casas, é um choque civilizacional profundo. Aterrar aqui de avião e de repente metem-nos no meio deste povo e destas aldeias... não é fácil para algumas cabecinhas...
Até ao Km 30 as aldeias sucederam-se e os caminhos tinham capacidade de suportar transito automóvel (se não gostarmos do automóvel) ou 4x4 (estes sim, até se pelam por pistas assim). 4h30 de prova e estou no reabastecimento do Km30. Parece-me bem. Tinha estimado 6h até ali. Obviamente fui muito conservador. Vim devagar e na poupança e mesmo assim fiz menos 1h30. De facto até ali o percurso era mesmo muito rolante e simples.
Mas tudo iria mudar a partir de agora. Acabaram-se as facilidades. "Carreguem bem de água. Vão ser 38Km sem reabastecimentos. No Km 50 não há reabastecimentos mas há jerry cans com água. É tudo o que têm. Têm os rios mas tenham cuidado pois convem purificar a água com comprimidos". Estávamos no PC3 e armei-me em camelo; bebi tudo o que pude, enchi as garrafas e lá parti com 2,5 litros de água.
Depois de atravessarmos um grande rio aos 1500m (o ponto mais baixo do percurso) a subida instalou-se para durar algumas horas. Aqui tive por companhia um simpático casal de franceses na casa dos 50's. Estavam a fazer a prova juntos. Ele filho de um espanhol estava deliciado em falar comigo em português. Tal como muitos dos companheiros que ia encontrando pela prova tinham já participado várias vezes no UTMB. Dizia-me ele que no ultimo UTMB ele fez 35h e a mulher 37h e que com uma diferença tão pequena não fazia sentido irem separados Devia ter seguido sempre com este simpático francês de origem espanhola e falante de português. Iam fazer 24h disse-me ele (e fizeram). Mas parei a meio da subida porque me estava a dar uma fome horrível e nunca mais os consegui apanhar.
4 horas, entre subidas e descidas, foi o tempo que demorou a percorrer os 20Km.até ao PC4. 9h de prova, 3 da tarde. Uma tarde agradável e jerry-cans enormes cheios de uma deliciosa água do rio. Apetecia ficar ali a saborear o sol e a refrescar a garganta. Tinha estimado 12h até ao PC4 mas estava motivado com as 3h a menos. Se continuasse a roubar tempo à previsão, as 24h de prova seriam possíveis para uma marca surpreendente (isto atendendo aos resultados do ano passado que eram a unica referencia que tinha).
Depois de atravessarmos um grande rio aos 1500m (o ponto mais baixo do percurso) a subida instalou-se para durar algumas horas. Aqui tive por companhia um simpático casal de franceses na casa dos 50's. Estavam a fazer a prova juntos. Ele filho de um espanhol estava deliciado em falar comigo em português. Tal como muitos dos companheiros que ia encontrando pela prova tinham já participado várias vezes no UTMB. Dizia-me ele que no ultimo UTMB ele fez 35h e a mulher 37h e que com uma diferença tão pequena não fazia sentido irem separados Devia ter seguido sempre com este simpático francês de origem espanhola e falante de português. Iam fazer 24h disse-me ele (e fizeram). Mas parei a meio da subida porque me estava a dar uma fome horrível e nunca mais os consegui apanhar.
4 horas, entre subidas e descidas, foi o tempo que demorou a percorrer os 20Km.até ao PC4. 9h de prova, 3 da tarde. Uma tarde agradável e jerry-cans enormes cheios de uma deliciosa água do rio. Apetecia ficar ali a saborear o sol e a refrescar a garganta. Tinha estimado 12h até ao PC4 mas estava motivado com as 3h a menos. Se continuasse a roubar tempo à previsão, as 24h de prova seriam possíveis para uma marca surpreendente (isto atendendo aos resultados do ano passado que eram a unica referencia que tinha).
No PC4 lêem-nos a cartilha. "Vocês agora vão ter de vencer aquele colo lá em cima. Estão a ver? São 500m de desnível em 2km sempre a subir quase a pique num trilho aos S's para permitir a progressão num terreno de cascalho e gravilha. Até faz doer o pescoço olhar para cima. Cà de baixo o trilho era invisível e só se revelava à medida que íamos subindo e verificando os pontos vermelhos das marcações, bem como o trilho um pouco mais calcado e consistente devido aos inúmeros burros que desenham o traçado ao longo dos tempo e viagens de sobe e desce. Meto o ritmo habitual e antevendo o gigantesco cansaço não perco tempo. Vou ter tempo de me cansar a sério. Não vale a pena antecipar.
Trepo relativamente bem e os meus companheiros não me conseguem apanhar na subida. Um misto de emoções apodera-se de mim durante a subida quando penso nas minhas princesas em casa. Liberto um pouco a pressão, mas só um pouco. Não vale a pena desidratar mais ainda.
No colo não resisto a um grito libertador, Fákiu Máda Fáka!!! Passo pela antena repetidora da rede de transmissões que montaram para a prova. Estava novamente aos 3000m.
No PC4 já me tinham dito que dali ao PC6 (Km68) seriam cerca de 3h. Se tudo corresse bem estaria no PC6, antes da mega subida com 12 horas de prova, às 6 da tarde. Não ia evitar a passagem nocturna aos 3500m mas ia tirar 3 horas à estimativa das 28h.
Na enorme descida que se seguiu os pés já iam em dificuldades. Se nas subidas não dou hipóteses aos que me perseguem nas descidas os pés o o massacre dos quadris não me permitem ser competitivo. Sou passado por 3 companheiros e sigo sozinho por um vale enorme onde acompanho um rio ao longo de vários Kms em busca do PC6 e do Km 68. Aguardava-me uma refeição quente, vários alimentos e bebidas. Um pouco de descanso enquanto iria trocar de roupa, preparar o frontal, agasalhar-me ao máximo para passar o terror dos 3500. A cada curva já sonhava com o Km 68. Sigo sozinho pelo vale que começa a entrar no lusco fusco. As cabras riem-se de mim a serpentear pelo caminho dos burros e trepam a direito pelas encostas para me mostrarem que sou mesmo bazaroco e não percebo nada de trail.
Começo a encontrar rebanhos e a ouvir burros a urrar. Sinal que a aldeia está próxima. Pergunto a um pastor berbére se a aldeia está longe. Embora pareça que percebeu a minha pergunta eu é que não percebi nada da resposta dele. Nem sei que lingua falou... Nas montanhas não é fácil encontrar quem fala francês. A lingua mais comum é o berbére. Mas o que eu quis ouvir era que era já ali depois da curva.
Quando surgiu fiquei eufórico. 12 horas de prova. Faltavam agora menos de 40Km. Será que 12h chegavam? As 24 horas ou menos estavam de facto ao alcance? Não esperava maiores dificuldades do que até agora. Não era possível maior dureza. Claro que o cansaço acumulado iria fazer estragos mas mesmo assim eram menos 28Km nas mesmas 12h. Parecia perfeitamente atingível.
É tempo de perder 30 minutos. Entro para dentro de uma tenda e metodicamente troco roupa molhada por roupa seca, troco de meias, ponho mais uma vez vaselina nos pés, preparo o frontal, e como canja com massa. A noite está a cair mas o moral sobe em flecha. Um dos organizadores no PC6 explica-me a próxima tarefa. "Vais subir aos 3200m, depois vais descer um pouco e subir aos 3500m. Atenção à descida dos 3500m. Muito perigosa. Vai pé ante pé. Daqui a 6 horas estás em Imlil (PC8 - Km 88). Agasalha-te bem, está muito vento e frio lá em cima".
Parti feliz por estar perante o ultimo grande desafio da prova. A grande duvida estava ali a confrontar-se comigo. Se tudo corresse bem, dentro de umas horas estava a descer e as 6h estimadas até Imlil iriam manter a boa média que estava a fazer.
Já ia com uns 10-15 minutos de subida apercebo-me que não tinha reabastecido de água. Rapidamente avaliei o stock de água e verifiquei que estava quase sem água. Frustração!!!! Será que vou precisar de água? 6h até ao próximo PC. Sim, vou. Nem penso mais nisso. Não se brinca com estas coisas. Imediatamente regresso lá abaixo, enquanto pensava nuns nomes jeitosos para auto-insultar a minha estupidez. A noite entretanto tinha caído e as marcações são feitas para um único sentido. De modo que voltar atrás de noite não foi tarefa simples. O que vale é que conseguia ver a tenda lá em baixo e mais ou menos lá ia dando com o caminho. Depois de 300 nomes feios cheguei, enchi as garrafas de água e voltei a subir. Com esta brincadeira foram-se mais de 30 minutos.
Ao fim de pouco tempo já estava de novo a subir e a ultrapassar os companheiros que entretanto me tinham passado. A subida era violenta para variar. O vento soprava cada vez com mais força e transformavam o frio, já de si grande, em sensação de temperaturas negativas. Novo aumento de ânimo ao chegar ao colo dos 3200m. Uma tenda com um médico e mais 2 pessoas da organização controlam as passagens e comunicam via rádio com a base informando os atletas que vão passando. Aqui cometo um erro tremendo. Peço para entrar dentro da tenda para comer e beber qualquer coisa. As rajadas de vento ameaçam levar a tenda pelo ar. Enquanto como e me hidrato o corpo molhado arrefece subitamente malgrado a enorme subida e esforço que foi chegar ali. Quando oiço companheiros a chegar saio da tenda para prosseguir viagem. Uma rajada de vento fortíssima abana-me de alto abaixo e um arrepio de frio deixa-me a tremer de forma descontrolada. Entro dentro da tenda com um ataque de frio terrível. Não consigo continuar, arrefeci e estou com um princípio de hipotermia. Tapam-me com um cobertor e ali fico a tremer de frio. Os restantes companheiros vão passando e seguindo e eu ali a tremer descontroladamente. O médico presente diz que vão fazer uma bebida quente e que vou recuperar. Naquela altura não acreditava que conseguisse voltar a sair daquela tenda.
O fogareiro embora potente nunca mais fervia a água. Em altitude o ponto de ebulição da água sobe devido à diminuição da pressão atmosférica. Ainda demorou cerca de 15 minutos só para ferver a água. Mas tal como o médico disse, ao fim de 2 chás bem quentes o corpo lá reagiu. Consegui tirar o cobertor de cima, saquei de uma t-shirt de mangas compridas que já estava toda encharcada e vesti também. Tinha agora 4 camadas de roupa sendo a ultima o meu casaco impermeável que supostamente deveria garantir uma estufa no tronco. Aproveitei a passagem de um companheiro e com uma dose de coragem gigantesca lancei-me novamente ao vento encosta abaixo. Era preciso descer um pouco antes de voltar a subir. Não parei de correr, mesmo com algum perigo de escorregar e de cair (e caí algumas vezes) Mas não podia parar. Tinha de aquecer e lutar contra aquele vento e frio.
Já não sei quem liderava, se o medo se a adrenalina. Corria encosta abaixo e tentava esquecer-me de que tudo podia correr mal. Quando começámos a subir o dilema era, seguir com alguns companheiros mais lentos e sentir o corpo a arrefecer, ou meter o meu ritmo e tentar aquecer montanha acima mas seguir sozinho. Tentei a companhia mas às tantas tive de acelerar.
Mesmo chegando aos 3500m com enormes rajadas de vento a preocupação não acalmava. Era a tal descida terrível que aí vinha. Já não entro na tenda e digo ao médico presente que quero seguir. Não posso parar. Guardo os bastões e começo a descida a correr à espera das dificuldades. Mas ao mesmo tempo não podia parar, sentia o corpo frio e o pânico de enregelar não me abandonava. Após os primeiros metros em que a organização pôs uma corda prosseguia a 4, saltando e agarrando-me às pedras. Tentava usar todos os membros para fazer uma progressão segura e aquecia à base de descargas de adrenalina. Já não sobrava mais nada.
À medida que descia as rajadas de vento tornavam-se mais espaçadas. A descida não dava tréguas, nem de inclinação nem de dificuldades.Cai mais de 20 vezes. O piso de cascalho solto, a inclinação, aguardavam todos os passos em falso para me deslizar um pé, outro pé. E caía, caía. Nem voltar a usar os bastões me salvava. O ombro direito já massacrado com tanta queda já não tinha forças para amparar o corpo sempre que perdia o equilíbrio. Até as rajadas de vento me atiravam ao chão quando me apanhavam desprevenido. Foi um suplício que podia ter corrido muito mal, vezes demais... Mas o que acabei foi por chegar a uma cota onde estava mais um PC. Dizem-me que faltam poucos Kms para Imlil o que me deixa mais animado. O terreno endireita um pouco, mas pouco demais para mim. Lá reduzo a frequência das quedas até que o caminho vai dar a uma pista um pouco mais larga. Nesta zona os pontos de marcação fluorescentes , que tanto ajudaram na subida e na descida, não existem. Apenas os pontos rosa que não são florescentes e são muito mais difíceis de localizar. Paro com frequência em busca do caminho certo mas nunca me perdi.
Imlil parece já ali. Mas é pura ilusão. Quando chego perto era um casario e alguns companheiros itlalianos Sigo com eles a passo. Já ninguém quer correr pelos vistos. Nunca mais encontramos o PC dos 88Km. O animo está fraco agora. As tais 6 horas já tinham sido superadas há muito mas não era isso que mais me atormentava agora. Queria parar um pouco, trocar de roupa, tratar os pés, mandar um SMS à Dora que estava sem notícias desde o Km 30 às 11 da manhã. Seriam agora cerca de 2h da manhã e em vez de 6h foram 7h30 até ao Km 88.
Imlil é uma pequena vila a 1700 metros de altitude incrustada num vale. Famosa por ser a base de todas as subidas ao cume do Toubkal, tem vários hotéis e prospera com o turismo do trekking e de todos os que ambicionam subir ao cimo de uma montanha de mais de 4000 metros. Ao contrário de todas as aldeias por onde passámos aqui há alcatrão, carros e até o PC8 estava instalado num dos restaurantes da vila com um aspecto europeu q.b.
Finalmente podia recarregar a alma e o ânimo. O podólogo tratou-me dos pés que até nem estavam muito mal. Troquei de meias, t-shirt limpa, troquei as pilhas do frontal, comi uma sopa e uma massa e estava pronto para partir de novo. Os italianos que seguiam comigo mal pararam e o meu companheiro de camarata André, apareceu quando estava quase a sair e mal se demorou. Já não tive pachorra para pôr o Garmin a carregar. Que se lixe o track, vamos mas é acabar isto.
Diz-me o podólogo, vais demorar 6 horas até à meta, vais ter de subir muito. Digo-lhe que vou fazer 5 horas. Se fez um bom trabalho com os meus pés são 5 horas :)
Arranco sozinho, um pouco com receio de falhar o caminho mas o frontal com pilhas novas é um descanso. Corro enquanto não chego à próxima aldeia onde é preciso começar mais uma escalada. Vejo frontais ao longo da enorme parede. Seria preciso escalar cerca de 300, 400m. O problema é que eram quase na vertical. O caminho em S contínuo e massacrante não permite mais que subir a passo. Mesmo assim a inclinação é esgotante. Quando se olha para cima e se vê as luzinhas a dançar 300 ou 400m acima é desmotivante saber que vamos ter de subir tanto. Mas não resta alternativa. Os italianos estão demasiado longe mas o André segue ali perto, talvez 30 ou 40 metros acima de mim.
Pese embora a curta distância não o consigo alcançar de forma fácil. Seria preciso passar mais um colo aos 2100m e descer novamente aos 1800m onde nos esperava um rio que corria bastante forte. Finalmente junto-me ao André na travessia e passamos sem nos molharmos.
Se passámos um rio já sabíamos o resto da história. Toca a subir! Passamos vários habitantes que tinham acabado de acordar e se preparavam para mais um dia de trabalho. Começa cedo o dia nas montanhas. Seriam 4h - 4h30 no máximo. Passamos no PC9, apenas controlo mas cravamos um pouco de água.
A simpática jovem diz-nos carinhosamente que nos faltam agora 10Km e 1000m de desnível. 1000m de desnível com 95Km nas pernas são uma brutalidade. 1000m de desnível são uma brutalidade até com 0Km. São várias horas a penar para vencer 1000m de desnível em tão poucos Km's. Estava à espera de alguma dureza no final mas afinal ela superou todas as expectativas. A pista a sair da aldeia começou larga, subida forte mas uma auto-estrada das montanhas. O André sonhava que íamos assim até ao fim :) Mas rapidamente tudo se desvaneceu e voltámos ao caminho de cabras e de burros do costume. S's sem fim a pique montanha acima. O André mandava-me seguir e não esperar por ele. Mas eu queria lá saber do tempo. O André era um mec porreiro e eu prefeira ir à conversa com ele do que fazer menos meia hora ou o que fosse.
Já não podia fazer mais uma curvinha, mas a subida não dava sinais de abrandar. As subidas são feitas em modo sobe 3 passos, vira 180º, sobe 3 passos, vira 180º, repete até ao infinito. Conhecia o vale da subida final do reconhecimento da véspera e esperava a cada momento de dobrar mais uma prega da montanha e descobrir o vale. No entanto, não sabia a que altitude iríamos surgir. Mas quando vi a aldeia cá em baixo percebi rapidamente que nos faltavam talvez mais 500m de ascenção naqueles 3 ou 4 km finais. Ia ser sofrer até ao fim. E foi claro. Quando finalmente apareceu o trilho que tinha feito na véspera, a meio da encosta, até ao colo final de onde se via a meta fiquei capaz de correr mais 105Km.
A partir dali tudo se processou muito depressa. Passámos o colo aos 2800 e corremos encosta abaixo. O Luis estava na estrada junto ao CAF e registou a chegada. Cortámos a meta juntos e com um sorriso de orelha a orelha! Estava feito o UTAT. Vencidos os 6500m de desnível positivo (13000 de total) e os 105Km mais duros da minha curta experiência de trailer. 26h19m embora isso seja o menos importante.
É tempo de perder 30 minutos. Entro para dentro de uma tenda e metodicamente troco roupa molhada por roupa seca, troco de meias, ponho mais uma vez vaselina nos pés, preparo o frontal, e como canja com massa. A noite está a cair mas o moral sobe em flecha. Um dos organizadores no PC6 explica-me a próxima tarefa. "Vais subir aos 3200m, depois vais descer um pouco e subir aos 3500m. Atenção à descida dos 3500m. Muito perigosa. Vai pé ante pé. Daqui a 6 horas estás em Imlil (PC8 - Km 88). Agasalha-te bem, está muito vento e frio lá em cima".
Parti feliz por estar perante o ultimo grande desafio da prova. A grande duvida estava ali a confrontar-se comigo. Se tudo corresse bem, dentro de umas horas estava a descer e as 6h estimadas até Imlil iriam manter a boa média que estava a fazer.
Já ia com uns 10-15 minutos de subida apercebo-me que não tinha reabastecido de água. Rapidamente avaliei o stock de água e verifiquei que estava quase sem água. Frustração!!!! Será que vou precisar de água? 6h até ao próximo PC. Sim, vou. Nem penso mais nisso. Não se brinca com estas coisas. Imediatamente regresso lá abaixo, enquanto pensava nuns nomes jeitosos para auto-insultar a minha estupidez. A noite entretanto tinha caído e as marcações são feitas para um único sentido. De modo que voltar atrás de noite não foi tarefa simples. O que vale é que conseguia ver a tenda lá em baixo e mais ou menos lá ia dando com o caminho. Depois de 300 nomes feios cheguei, enchi as garrafas de água e voltei a subir. Com esta brincadeira foram-se mais de 30 minutos.
Ao fim de pouco tempo já estava de novo a subir e a ultrapassar os companheiros que entretanto me tinham passado. A subida era violenta para variar. O vento soprava cada vez com mais força e transformavam o frio, já de si grande, em sensação de temperaturas negativas. Novo aumento de ânimo ao chegar ao colo dos 3200m. Uma tenda com um médico e mais 2 pessoas da organização controlam as passagens e comunicam via rádio com a base informando os atletas que vão passando. Aqui cometo um erro tremendo. Peço para entrar dentro da tenda para comer e beber qualquer coisa. As rajadas de vento ameaçam levar a tenda pelo ar. Enquanto como e me hidrato o corpo molhado arrefece subitamente malgrado a enorme subida e esforço que foi chegar ali. Quando oiço companheiros a chegar saio da tenda para prosseguir viagem. Uma rajada de vento fortíssima abana-me de alto abaixo e um arrepio de frio deixa-me a tremer de forma descontrolada. Entro dentro da tenda com um ataque de frio terrível. Não consigo continuar, arrefeci e estou com um princípio de hipotermia. Tapam-me com um cobertor e ali fico a tremer de frio. Os restantes companheiros vão passando e seguindo e eu ali a tremer descontroladamente. O médico presente diz que vão fazer uma bebida quente e que vou recuperar. Naquela altura não acreditava que conseguisse voltar a sair daquela tenda.
O fogareiro embora potente nunca mais fervia a água. Em altitude o ponto de ebulição da água sobe devido à diminuição da pressão atmosférica. Ainda demorou cerca de 15 minutos só para ferver a água. Mas tal como o médico disse, ao fim de 2 chás bem quentes o corpo lá reagiu. Consegui tirar o cobertor de cima, saquei de uma t-shirt de mangas compridas que já estava toda encharcada e vesti também. Tinha agora 4 camadas de roupa sendo a ultima o meu casaco impermeável que supostamente deveria garantir uma estufa no tronco. Aproveitei a passagem de um companheiro e com uma dose de coragem gigantesca lancei-me novamente ao vento encosta abaixo. Era preciso descer um pouco antes de voltar a subir. Não parei de correr, mesmo com algum perigo de escorregar e de cair (e caí algumas vezes) Mas não podia parar. Tinha de aquecer e lutar contra aquele vento e frio.
Já não sei quem liderava, se o medo se a adrenalina. Corria encosta abaixo e tentava esquecer-me de que tudo podia correr mal. Quando começámos a subir o dilema era, seguir com alguns companheiros mais lentos e sentir o corpo a arrefecer, ou meter o meu ritmo e tentar aquecer montanha acima mas seguir sozinho. Tentei a companhia mas às tantas tive de acelerar.
Mesmo chegando aos 3500m com enormes rajadas de vento a preocupação não acalmava. Era a tal descida terrível que aí vinha. Já não entro na tenda e digo ao médico presente que quero seguir. Não posso parar. Guardo os bastões e começo a descida a correr à espera das dificuldades. Mas ao mesmo tempo não podia parar, sentia o corpo frio e o pânico de enregelar não me abandonava. Após os primeiros metros em que a organização pôs uma corda prosseguia a 4, saltando e agarrando-me às pedras. Tentava usar todos os membros para fazer uma progressão segura e aquecia à base de descargas de adrenalina. Já não sobrava mais nada.
À medida que descia as rajadas de vento tornavam-se mais espaçadas. A descida não dava tréguas, nem de inclinação nem de dificuldades.Cai mais de 20 vezes. O piso de cascalho solto, a inclinação, aguardavam todos os passos em falso para me deslizar um pé, outro pé. E caía, caía. Nem voltar a usar os bastões me salvava. O ombro direito já massacrado com tanta queda já não tinha forças para amparar o corpo sempre que perdia o equilíbrio. Até as rajadas de vento me atiravam ao chão quando me apanhavam desprevenido. Foi um suplício que podia ter corrido muito mal, vezes demais... Mas o que acabei foi por chegar a uma cota onde estava mais um PC. Dizem-me que faltam poucos Kms para Imlil o que me deixa mais animado. O terreno endireita um pouco, mas pouco demais para mim. Lá reduzo a frequência das quedas até que o caminho vai dar a uma pista um pouco mais larga. Nesta zona os pontos de marcação fluorescentes , que tanto ajudaram na subida e na descida, não existem. Apenas os pontos rosa que não são florescentes e são muito mais difíceis de localizar. Paro com frequência em busca do caminho certo mas nunca me perdi.
Imlil parece já ali. Mas é pura ilusão. Quando chego perto era um casario e alguns companheiros itlalianos Sigo com eles a passo. Já ninguém quer correr pelos vistos. Nunca mais encontramos o PC dos 88Km. O animo está fraco agora. As tais 6 horas já tinham sido superadas há muito mas não era isso que mais me atormentava agora. Queria parar um pouco, trocar de roupa, tratar os pés, mandar um SMS à Dora que estava sem notícias desde o Km 30 às 11 da manhã. Seriam agora cerca de 2h da manhã e em vez de 6h foram 7h30 até ao Km 88.
Imlil é uma pequena vila a 1700 metros de altitude incrustada num vale. Famosa por ser a base de todas as subidas ao cume do Toubkal, tem vários hotéis e prospera com o turismo do trekking e de todos os que ambicionam subir ao cimo de uma montanha de mais de 4000 metros. Ao contrário de todas as aldeias por onde passámos aqui há alcatrão, carros e até o PC8 estava instalado num dos restaurantes da vila com um aspecto europeu q.b.
Finalmente podia recarregar a alma e o ânimo. O podólogo tratou-me dos pés que até nem estavam muito mal. Troquei de meias, t-shirt limpa, troquei as pilhas do frontal, comi uma sopa e uma massa e estava pronto para partir de novo. Os italianos que seguiam comigo mal pararam e o meu companheiro de camarata André, apareceu quando estava quase a sair e mal se demorou. Já não tive pachorra para pôr o Garmin a carregar. Que se lixe o track, vamos mas é acabar isto.
Diz-me o podólogo, vais demorar 6 horas até à meta, vais ter de subir muito. Digo-lhe que vou fazer 5 horas. Se fez um bom trabalho com os meus pés são 5 horas :)
Arranco sozinho, um pouco com receio de falhar o caminho mas o frontal com pilhas novas é um descanso. Corro enquanto não chego à próxima aldeia onde é preciso começar mais uma escalada. Vejo frontais ao longo da enorme parede. Seria preciso escalar cerca de 300, 400m. O problema é que eram quase na vertical. O caminho em S contínuo e massacrante não permite mais que subir a passo. Mesmo assim a inclinação é esgotante. Quando se olha para cima e se vê as luzinhas a dançar 300 ou 400m acima é desmotivante saber que vamos ter de subir tanto. Mas não resta alternativa. Os italianos estão demasiado longe mas o André segue ali perto, talvez 30 ou 40 metros acima de mim.
Pese embora a curta distância não o consigo alcançar de forma fácil. Seria preciso passar mais um colo aos 2100m e descer novamente aos 1800m onde nos esperava um rio que corria bastante forte. Finalmente junto-me ao André na travessia e passamos sem nos molharmos.
Se passámos um rio já sabíamos o resto da história. Toca a subir! Passamos vários habitantes que tinham acabado de acordar e se preparavam para mais um dia de trabalho. Começa cedo o dia nas montanhas. Seriam 4h - 4h30 no máximo. Passamos no PC9, apenas controlo mas cravamos um pouco de água.
A simpática jovem diz-nos carinhosamente que nos faltam agora 10Km e 1000m de desnível. 1000m de desnível com 95Km nas pernas são uma brutalidade. 1000m de desnível são uma brutalidade até com 0Km. São várias horas a penar para vencer 1000m de desnível em tão poucos Km's. Estava à espera de alguma dureza no final mas afinal ela superou todas as expectativas. A pista a sair da aldeia começou larga, subida forte mas uma auto-estrada das montanhas. O André sonhava que íamos assim até ao fim :) Mas rapidamente tudo se desvaneceu e voltámos ao caminho de cabras e de burros do costume. S's sem fim a pique montanha acima. O André mandava-me seguir e não esperar por ele. Mas eu queria lá saber do tempo. O André era um mec porreiro e eu prefeira ir à conversa com ele do que fazer menos meia hora ou o que fosse.
Já não podia fazer mais uma curvinha, mas a subida não dava sinais de abrandar. As subidas são feitas em modo sobe 3 passos, vira 180º, sobe 3 passos, vira 180º, repete até ao infinito. Conhecia o vale da subida final do reconhecimento da véspera e esperava a cada momento de dobrar mais uma prega da montanha e descobrir o vale. No entanto, não sabia a que altitude iríamos surgir. Mas quando vi a aldeia cá em baixo percebi rapidamente que nos faltavam talvez mais 500m de ascenção naqueles 3 ou 4 km finais. Ia ser sofrer até ao fim. E foi claro. Quando finalmente apareceu o trilho que tinha feito na véspera, a meio da encosta, até ao colo final de onde se via a meta fiquei capaz de correr mais 105Km.
A partir dali tudo se processou muito depressa. Passámos o colo aos 2800 e corremos encosta abaixo. O Luis estava na estrada junto ao CAF e registou a chegada. Cortámos a meta juntos e com um sorriso de orelha a orelha! Estava feito o UTAT. Vencidos os 6500m de desnível positivo (13000 de total) e os 105Km mais duros da minha curta experiência de trailer. 26h19m embora isso seja o menos importante.
Não deixem de ver o filme oficial da organização, até para verem o momento dos tugas!
Não é uma prova nada fácil. Pude confirmá-lo com vários companheiros que o comparavam com muitos outros trails. Quase toda a gente com que falei já tinha feito o UTMB várias vezes e muitas outras provas em França e um pouco por todo o mundo. Obviamente uma prova de 160Km tem outras dificuldades, nomeadamente as 2 noites sem dormir, mas aqui a tecnicidade e dureza do terreno, a passagem aos 3500 em plena noite, a descida perigosíssima, fazem com que várias pessoas a tivessem classificado como uma das mais duras senão a mais dura prova que alguma vez fizeram.
O Luis tinha acabado a prova dele ao fim de 11h. Os 42Km também não foram pêra doce. Era altura de um mega banho e de descansar um pouco antes de irmos celebrar com uma tagine com o meu companheiro de prova André. Só já faltava o jantar de cous cous da festa marroquina dessa noite que o forte vento se encarregou de prejudicar. Mas a malta é rija e as celebrações e as entregas de prémios lá se fizeram. Nessa noite ficámos na mesa da organização e em conversa com o Dawa Sherpa soube todos os detalhes do prémio que iam sortear (a tal viagem à Indonésia de 3 semanas para participar numa prova organizada por ele com tudo pago, incluindo a viagem de avião). Fiz força para que não me saísse tal prémio e me colocasse perante um terrível dilema. Se fosse daqui a uma meia dúzia de anos... agora nesta altura da vida era de todo muito complicado. Mas iria perder uma oportunidade de uma vida.... Felizmente saiu a outro companheiro!
Eu já conhecia Marrocos e tirando o Atlas profundo não houve grandes surpresas. No máximo fiquei apenas com um pouco mais de vontade de voltar. E com bastante inveja do Óscar Perez que após a prova ia ficar com a mulher mais 15 dias a fazer trekking pelo Atlas!
Quando nos esquecemos das dificuldades, fica a beleza do atlas, a enormidade do cenário, as paisagens magníficas, a eficácia da organização, o exotismo do país e dos berbéres, o choque cultural, a simpatia das populações. Participar no UTAT é muito mais que ir fazer um trail. É entrarmos num mundo à parte, noutra dimensão, vermos outras realidades, percebermos que se pode viver doutras maneiras, em sítios que nos escapam à compreensão.
André, consegues compreender porque é que estes tipos vivem aqui? Eu não!
Como diz o Òscar Perez, esta é uma prova que é obrigatório fazer ao menos uma vez na vida. Vamos ver se o Atlas não me obriga a voltar. Com um pouco mais de preparação era capaz de passar aos 3500m ao final da tarde...
No regresso uma lição de geografia grátis. O estreito de Gibraltar. Em baixo à direita, Tanger. Em cima no canto superior de África, Ceuta. Na Europa, em baixo uma gigantesca praia e uma vila, Tarifa. Uma baía enorme, Algeciras e Gibraltar.
Para fechar, o filme da nossa viagem. Divirtam-se! E não percam esta prova.