domingo, 27 de dezembro de 2015

Injinji - Correr de luvas...nos pés!


As meias com dedos já existem há muitos anos, mas foi por volta do ano 2000 que 2 irmãos numa longa caminhada em montanha ficaram sem meias limpas e com uma prova de trail running no dia seguinte, Joaquin sugeriu a Randuz que corresse com umas meias de dedos arco-iris. Não sei se terão sido umas deste género, mas como em muito boas ideias esta nasceu de uma necessidade. Segundo consta, a prova deve ter corrido mesmo bem porque a partir dessa noite seria o início do que viria a ser a Injinji.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Suplemento ou não suplemento, eis a questão

Até que ponto os suplementos são necessários? Como sabemos que não estamos, por um lado a deitar dinheiro fora, e por outro a fazer mais mal do que bem, com possíveis efeitos secundários? A resposta é simples e directa. Não sabemos. 

domingo, 20 de dezembro de 2015

50 anos - 50 Kms

Como é ter 50 anos?

Na realidade não faço ideia o que significa ter 50 anos.

Quando somos putos sonhamos em ser adultos, poder tirar a carta, votar, ir onde quisermos sem precisar de autorização de ninguém, ser um cidadão na posse de todos os direitos. Depois quando já temos isso estamos ali um bocado em estado de graça. Vem a faculdade, somos os maiores, depois começa-se a ganhar algum dinheiro e as miúdas (e os miúdos para quem preferir), estamos no auge, o mundo foi feito para desfrutarmos e ainda nos sobra tempo para, nas horas vagas, fazermos planos para o melhorar e salvar.

Eiiii!!! Vão correr? Posso ir com vocês?


Bairro da Boavista, 20 horas.

O novo local da São Silvestre Pirata de Monsanto fazia franzir o sobrolho a muito lisboeta. Fomos muito bem recebidos por todas as pessoas. O pavilhão gimnodesportivo é um luxo. Os funcionários simpáticos e prestáveis. Na verdade não podíamos ter escolhido melhor local para o nosso convívio. 

Ainda estávamos a tirar as coisas do carro e a preparar-nos para correr começo a ouvir alguém a gritar lá de cima de um prédio. "Eiiii! Eiiii!" Nâo sabia se era comigo mas lá olhei. Talvez num 4º ou 5º andar alguém à janela. "Vão correr?" Vamos disse eu. "Posso ir com vocês?" Claro, vamos embora. A pouca iluminação e a distancia impediram-me de perceber bem quem era o meu interlocutor. A janela fechou-se e quando olhei outra vez, um pouco surpreendido com o facto, a luz já estava apagada.

Fiquei a pensar naquilo. Daquelas coisas improváveis que não acontecem noutros lados, demasiado digamos, correctos, socialmente correctos?              

Contei a alguns amigos e depois o episódio desvaneceu-se no meio de tanta coisa que estava a acontecer. Não me voltei a lembrar do companheiro que de repente queria vir connosco.

Algures a meio do percurso seguia à frente com o Boleto e oiço alguém dizer "Mas é que eu tenho 60 anos" O Boleto responde que isso não era nada, ele tinha 38... e olho para o senhor de 60 anos. Embora hajam algumas pessoas de 60 anos que pudessem estar ali connosco, seguíamos num ritmo calmo mas seguro, dificilmente estariam ali na frente do pelotão. Um senhor com o tradicional equipamento de estrada (calção curto e camisola de alças) sobressaía nitidamente do dress code do resto do pessoal (overdressed trail stuff). Será que era ele, o senhor que queria vir connosco? Quase sem arriscar pergunto-lhe se era ele que tinha perguntado se íamos correr e se podia vir connosco. E era, claro. Era o Sr. Artur.

Fantástico. O senhor Artur vive sozinho num 5º andar do bairro da Boavista e estava a fazer o jantar. Apercebeu-se daquela movimentação e não resistiu a fazer-nos companhia. O senhor Artur foi para mim a figura da noite. Representa o que de melhor tem o espírito da corrida. O senhor Artur não quis saber quantos Kms íamos fazer, nem o que íamos fazer. O senhor Artur só precisava de saber se podia vir connosco. 

Claro que o senhor Artur fez a voltinha dos 17 Km como se nada fosse. Mora à beira do Monsanto que é o seu jardim de treinos. Logo ali o convidei para vir jantar connosco a seguir, que deixasse o jantar dele e a solidão para o almoço do dia seguinte. 

No final mal tivemos tempo de nos despedirmos dele. Disse-lhe para ir a casa mudar de roupa e aparecer no pavilhão para jantar e conviver connosco. Mas o senhor Artur não apareceu. Quem sabe se para o ano podemos saber um pouco mais das histórias que tem para contar. 

Sim, porque alguém com o espírito dele tem seguramente coisas para nos ensinar. Obrigado por ter vindo senhor Artur. Bom Natal!

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Discovery Underground - Os 10 Kms mais improváveis do mundo


Menos de 24 horas depois desta aventura aqui fica o relato possível de uma experiência única.

Confesso que quando apareceu este desafio na comunicação social visitei a página de candidatura e ao perceber que era necessário um texto que demonstrasse a superação e o motivo pelo qual achava que devia ser escolhido para estar presente, simplesmente passei ao lado. Não me apetecia estar ali a desbobinar textos, pensar em razões e justificações.

Foi nos últimos dias do prazo que me voltei a lembrar deste desafio e que até já tinha o texto escrito. Há muito tempo escrevi um pequeno resumo do que foi o meu percurso na corrida. Um pequeno texto que facilita a vida a quem quer ler algo do que tenho escrito ao longo dos anos no meu blog. Não é fácil dar com as maiores aventuras que tenho vivido na corrida, no meu blog. Por isso escrevi esta página que não é mais do que um índice para as aventuras mais significativas, pelo menos para mim. Pode ter passado desapercebida a muita gente mas ela lá está no meu blog, em destaque. Chama-se Momentos Épicos. Uma singela página que vos pode levar tanto tempo a ler como eu demoro a correr 100 Km. E assim me candidatei a esta aventura, referindo o texto existente nesta página que é um 'best of' do que fiz desde que embarquei nesta vida, nesta nova vida.

Pelos vistos alguém mais (para além de mim) gostou do que leu e deu-me um bilhete para esta viagem única.

E de repente alguém nos segura pela mão, somos pequeninos, descemos uma escadaria que nos leva para debaixo do chão. Só isso já é desconcertante. Os pais dizem que ali naquele buraco, nas entranhas da terra, por debaixo da cidade, anda um comboio. Não conseguimos acreditar. Só podem estar a gozar. Mas continuamos a descer mais escadas, escadas rolantes, que descem sozinhas. È um mundo diferente debaixo do chão. A qualquer momento a Alice podia sair de uma daquelas portas, inacessíveis, e acharíamos perfeitamente normal.
Quando chegamos ao cais há uma linha férrea e o assunto fica sério. De facto a coisa parece verdade. Há mesmo uma linha ali. Como nos brinquedos lá de casa. E um túnel. Um comboio fantasma! De um lado e do outro um túnel escuro como breu. De onde vem? Dali ou dali? Quem não tem estas memórias? Quando desapareceu a magia de começar a ouvir ao longe o barulho de um comboio que aumenta e nos deixa pregados ao chão, até se materializar ali na estação? 

Só muito mais tarde o Metro passaria a fazer parte da minha rotina de estudante e a coisa passaria a ser banal. Mas o mistério daqueles túneis nunca desapareceria. Há umas portinhas no final de cada cais que dizem Passagem Proibida. Ahhhh! Que chatice. Espreitamos. Já lá vem? E esperamos pelo próximo que magicamente irá surgir. Nalgumas estações consegue-se ver a próxima e a lagarta a descer lentamente até chegar a vez da nossa viagem. 

Quem teve esta ideia de pôr pessoal a correr naqueles túneis? Compreendo a magia e a atracção e daí o sucesso de algo deste género. Mas imagino a dificuldade de avançar com algo tão fora do comum. Aliar a corrida à magia de o fazer num sítio que tem tanto de banal como de inacessível. Esta iniciativa nasceu em Espanha e embora saiba a motivação da mesma, desconheço a história por detrás do evento original.

Mas como diria a outra, isso agora não interessa nada. 
Alonga aí pró fotógrafo
Era uma noite apenas fresca de um Outono candidato a Outono mais quente de sempre. Já passa bem da meia noite, e à porta da estação de São Sebastião vai grande reboliço. O levantamento do kit de participante decorre sem confusão. Afinal eram apenas 100. Assinam-se termos de responsabilidade, recebe-se um capacete e uma t-shirt, material obrigatório e único aliás. Depois de descermos para a estação e antes de acedermos ao cais, uma minuciosa revista policial iria garantir isso mesmo. Nem garrafas de água, quanto mais telemóveis ou máquinas fotográficas.

A malta da montanha a marcar presença nas entranhas de Lisboa
O tempo lá ia passando entre brincadeiras e as ultimas fotografias. O Nelson Évora com grande espírito posava para centenas de fotos. À hora marcada somos agrupados de acordo com a nossa marca aos 10Km e à velocidade da revista policial descemos ao cais de embarque e depois para a linha. Um pouco por todo o lado os jornalistas, repórteres e cameras são mato. 

A princípio evito aquele carril central que diz Perigo de Morte. Respect! Claro que a corrente estava já cortada, mas estava mesmo? Foram muito anos a ver muita faísca, Perigo de Morte.... Mas depois de ver um fotógrafo a apoiar a camera em cima do carril lá se perde o respeito à coisa. Que frisson!

A pouco e pouco os 10 grupos de 10 vão sendo arrumados em fila indiana ao longo da linha no cais. Não sabemos bem o que vamos encontrar mas a opinião geral é que vai ser difícil correr. Toda a gente da organização nos diz isso mesmo. Inclusive pessoas do Metro. Muito obstáculo no percurso, etc.

Ó p'ra mim em equilíbrio em cima do Perigo de Morte 
Os grupos iriam partir de 90 em 90 segundos. Estou no segundo grupo. Uma cortina gigante de ripas com o logotipo do Discovery Underground esconde a entrada do túnel. Iríamos ser literalmente engolidos por aquele túnel.

Não haveria cronómetros nas precisamente à hora marcada o Nelson Évora dá a partida para o 1º grupo que desaparece por detrás da cortina. 90 segundos depois arrancamos. A euforia é grande, Esqueço-me de iniciar o meu cronómetro. Obviamente ali em baixo não há sinal GPS mas como o Fenix 2 tem um acelerómetro interno ia ser possível registar a distância e o ritmo, com base no movimento do braço. Estava curioso para ver a fiabilidade deste modo que nunca usei. Só o liguei já no Saldanha, cerca de 700m depois. Ó desgraça!

Os túneis tinham iluminação própria que dispensava o uso de frontal. Só numa ou noutra zona uma lâmpada fundida dificultou um pouco a progressão. Ainda assim era só seguir em frente.

Seguimos pela faixa do meio. Há 3 zonas possíveis para correr. Qualquer uma delas salpicada aqui e ali por obstáculos. Ao centro entre as duas linhas que usávamos obrigatoriamente nas estações dado que ali não há bermas laterais. Mal saíamos de cada estação era optar pelo lado esquerdo ou direito onde era possível correr em cima de uma caleira técnica ou em baixo ao lado da linha. Ocasionalmente qualquer uma das zonas apresentava obstáculos que era preciso contornar ou saltar. À entrada de cada estação o ritmo era interrompido pela necessidade de mudar para o centro e de voltar para a berma à saída.

Ao fim de 1 ou 2 estações a mecânica da coisa estava estabelecida. Era possível correr, muito e bem. Os obstáculos repetiam-se, os cabos, as agulhas, o saltitar para mudar de zona. Era mesmo possível ultrapassar, nas bermas, um em cima da caleira e outro em baixo junto à linha. Mas dada a separação por tempos e o espaçamento entre cada grupo rapidamente encaixámos nos nossos ritmos.

Às vezes subia-se bem, outras vezes também se descia bem. O viaduto exterior depois das Olaias permitiu refrescar. Os túneis são muito abafados. Estariam à vontade mais de 20 graus ali dentro. Até tremia de ver o pessoal cheio de camadas de roupa. Mas esta gente nunca andou de Metro?

Imensa gente ao longo dos túneis, espaçados a cada 250m. Os Kms sempre marcados por alguém que segurava uma placa. As estações sucediam-se. Chelas, Olivais , Cabo Ruivo, Oriente... Em Chelas vejo o Paulo Fernandes, grande festa. Abastecimento líquido. Aceito uma água que transporto comigo como de costume.

O ritmo era alto e mesmo sem grande esforço não estava fácil. O corpo não encontrava um ritmo certo, as subidas eram traiçoeiras. Sem grandes pontos de referência sabíamos que estávamos a subir porque as pernas se queixavam. A atenção ao piso era constante e isso também consome energia. Não queria ir muito depressa, antes saborear cada momento daquela oportunidade única, correr num local completamente inacessível e que (pelo menos para mim) nunca se repetirá.

Nunca tinha passado do Oriente para a frente. Foi uma boa estreia. A experência aproxima-se do final. Km 7, 8... Ver as estações ao longe a aproximarem-se ou a surgirem depois de uma curva, qual maquinista de brincar. Imagens que guardarei para sempre.

E por fim chegámos ao Aeroporto. Grande recepção e aplauso. Novo abastecimento e subimos à plataforma. Ficámos por ali um bocado enquanto nos íamos reencontrando. A apreensão de todos era grande. Afinal tivemos de correr e bem. Grande ritmo para quem pensava que ia apenas fazer uma caminhada cheia de obstáculos. Safa! A minha experiência durou cerca de 50 minutos mas o primeiro a chegar só desfrutou de 38. O Garmin marcou 9,3 Km e se somasse os 700m que faltaram iria acertar na mouche. Alguns Suuntos por ali marcavam mais de 11 Kms.,,

Cá fora o autocarro encheu-se rapidamente e zarpámos rumo à partida onde era tempo de despedidas e voltar para casa. Era preciso descansar um pouco antes de voltar a Lisboa, dentro de umas horas, para o Grande Prémio do Natal.

É difícil classificar esta experiência. Posso dizer que adorei esta viagem louca, só tenho dificuldade em arrumar a coisa numa caixinha com um rótulo. Foi algo completamente 'fora da caixa'. Não era preciso ter ido a correr, iria se calhar até desfrutar mais numa visita guiada, mas a correr foi o que se arranjou. A organização foi irrepreensível com tudo a decorrer como planeado a anunciado. A preocupação com a segurança foi grande. Creio que toda a equipa deve estar muito satisfeita como tudo decorreu, pelo menos do que me foi dado a ver.

Não posso dizer que é para repetir porque seguramente não irá acontecer. Pela excentricidade da coisa é algo que se faz uma vez na vida e pronto. Tive essa oportunidade, foi daquelas vezes em que consegui estar no sítio certo na hora certa. Valeu bem a pena Discovery Channel, Nos e Metro, Obrigado pela fantástica experiência!

Por volta das 5h lá adormeci. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Que a Força esteja convosco - Crossfit de trazer por casa

Nem todos os livros têm de ser complexos e massivos, exaustivos e detalhados. Pelo contrário.

Já há uns tempos que conheço as Dicas do Salgueiro. Lembram-se do anuncio  do Van Damme a fazer a espargata nos camiões TIR?


E do vídeo do fake Chuck Norris a parodiar o do Van Damme?



De repente era um mar de gajos a fazer espargatas em cima de tudo. Mas o do Salgueiro que fazia a espargata em 2 carrinhos de supermercado foi dos melhores. Mesmo cena tuga. Muito bom.

Na altura fui investigar quem era o Salgueiro, vi alguns dos seus vídeos e achei desde logo que estavam muito bem feitos (no livro confirmei porquê). Entretanto as solicitações são tantas e o tempo é tão pouco, só voltei a ter contacto com o Salgueiro quando ouvi a Prova Oral sobre o lançamento do seu livro. Gostei muito de ouvir o programa. Aconselho a que ouçam também. O Alvim é um puto fixe e gosto sempre de ouvir o programa dele. Sigam este link e relaxem. Já voltam para acabar de ler o artigo. O Bruno Salgueiro é um comunicador nato (no livro confirmei porquê também). Partilhei esse facto com alguém e claro, lá levei com o livro quando fiz anos.

O livro é muito interessante. Bem escrito, num tom informal, o autor conta-nos a sua história e faz uma excelente ligação ao leitor com uma abordagem muito bem conseguida. Depois de traçar as linhas base que devem ser seguidas, quer em termos de motivação, quer de alimentação, deixa-nos com uma ementa enorme de exercícios que podem fazer em qualquer lugar sem recorrer a outro aparelho que não seja o vosso próprio corpo e peso, ou com exercícios para quem tenha acesso a um ginásio. Tem um plano de treinos mensal que recorre apenas a conjuntos desses exercícios, que agrupados de várias formas, permitem desenhar um número infinito de sessões de treino. Treinos curtos de alta intensidade que podem adaptar ao vosso nível, aumentando gradualmente o número de repetições, o tempo ou a velocidade de execução, ao longo do tempo. Treinos que vos vão levar ao limite seja qual for o vosso nível. Muito ao estilo do CrossFit embora não seja um livro sobre CrossFit.

Já há uns tempos que, semanalmente, incluí 30 minutos de uma destas sessões em aula, com exercícios mais focados nos Glúteos, Abdominais e Pernas, o famoso GAP, bem conhecido das moças que frequentam ginásios. Claro que numa aula, com o instrutor a puxar por nós, não temos tanta hipótese de desmotivar. Mas aqui é possível uma progressão maior e levar o treino até muito mais perto do nosso limiar, algo que na realidade as 'aulas com gajas' já vão deixando a desejar. 

Como sabe o pessoal do trail, o treino de força é um complemento fundamental para atacar as subidas, as descidas, e de um modo geral reforçar todo o vosso core, dando mais estabilidade em corrida, etc. Um core forte vai permitir-vos correr mais fortes durante mais tempo.

Conclusão, um excelente e simples manual, fácil de ler e de usar. E se for bem usado, para além de dar cabo de vocês, vai-vos dar excelentes armas para melhorarem a vossa performance.


Por fim deixo-vos um dos primeiros vídeos que vi do homem e que para além de ser excelente e cheio de bons conselhos, constitui a base de todo e qualquer tipo de treino. Vejam e sigam.


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A Lisbonização da Maratona do Porto



Não sou fã da Maratona de “Lisboa”. Tem os 42.195 metros como todas as outras mas foram sendo incluídas alterações, umas mais radicais, outras mais subtis, que me levaram a deixar de gostar da prova. Neste artigo está um resumo do que me chateou há 2 anos e desde aí, não só por isto obviamente, nunca mais voltei. Há tanta coisa para fazer.

Tal como dizia nessa altura, a Maratona do Porto tinha bem mais motivos para ser a minha preferida. E não era só eu. A Maratona do Porto cresceu naturalmente e afirmou-se como a maior e melhor Maratona de Portugal. Em 2014 escrevi neste artigo todos os motivos que justificavam esse facto. Desde 2010, ano em que a fiz pela primeira vez, que se constituiu quase um ritual ir à Maratona do Porto. 

E escrevi também que a da Maratona do Porto era um cabaz com vários ingredientes . É importante que nenhum destes ingredientes falte para que a receita funcione….E em 2015 a receita foi alterada. 

Em termos gerais, até porque o percurso é 90% idêntico e as coisas funcionam bem, fruto de 12 anos de experiência, o aspeto do petisco é igual e é saboroso. Mas foram introduzidas alterações que não faziam falta a ninguém. Bom, a alguém faziam falta senão não tinham sido introduzidas.

Não me vou alongar muito sobre todas as implicações que as alterações tiveram, nem sobre os reais motivos pelos quais foram feitas, até porque não os conheço. Mas quando se piora uma coisa, do ponto de vista do atleta, começa a ficar aquela sensação estranha. Para que se faz isto? Havia real necessidade? 

O que piorou?

- Local de Partida e de chegada – O local de partida é francamente mau. A organização diz que o novo local foi escolhido para não incomodar a população. Tive de ler várias vezes a frase. PARA NÃO INCOMODAR A POPULAÇÃO? Mas uma cidade é incomodada quando dezenas de milhares de pessoas a visitam para celebrar uma festa como a Maratona? E só a malta da partida é que se sentia incomodada? O pessoal de Matosinhos, da Ribeira, de Gaia e de todos os outros locais são mais tolerantes? E em Paris, Londres, Madrid, Barcelona, Cascais, a malta incomoda? Bom, se nos metem no queimódromo de Matosinhos para não incomodarmos, o melhor se calhar é irmos incomodar para outro lado. Não consigo compreender esta afirmação, mas admito que o problema seja meu.
O local é mau porque é feio, é muito amplo, não se percebe onde as coisas estão. Onde estava o chá e o café? Só vi barraquinhas a vender. Dantes a barraquinha do chá e do café estava bem visível. Não havia um croqui do local. Era apenas um enorme recinto com as barracas dos patrocinadores arrumadas onde alguém entendeu que deviam estar. Quando se chega nem se consegue perceber onde está o corredor de saída e o que se vê ao longe nem sempre é atingível facilmente porque o local tem zonas vedadas, vedações, etc. Local sem qualquer interesse. Voltaremos a ele para falar da chegada.

- A partida – Partida! 50 metros depois curva à esquerda?!!?!? e fazemos 180º para começar a descer. Saímos relativamente à frente e na curva já tivemos de abrandar. Obviamente não estranhei quando a Dora me disse que estiveram vários minutos parados para passar naquela zona. Depois da curva o corredor encolhe e a opção foi fazer aquele 1º Km apertadinho quase em 5 minutos. Havia necessidade disto? Incompreensível numa organização com 12 anos de experiência. Fruto do novo local e para manter? Francamente mau.

- Transportes para o local – Como nos outros anos ficámos no Tuela ala sul. Alojamento low cost, mas que é mais do que suficiente para esticar o esqueleto e tomar um bom banho a seguir. Não optei pelo “pack Maratona” que incluía transporte para a partida. Demasiado caro a meu ver. Nas edições anteriores a partida era perto do Hotel e a organização disponibilizava gratuitamente autocarros para trazer os atletas de volta para a Rotunda da Boavista. Era perfeito. Agora com o novo local desapareceram esses transportes gratuitos. Ou se paga o tal pack que inclui transporte ou então é cada um por si. Nós optámos pelo Metro. 1h desde o hotel até à partida. 15 minutos à espera do Metro. Felizmente havia reforço de carreiras segundo a organização…. senão estávamos quanto tempo à espera? O suposto reforço também não evitou que fossemos tipo sardinhas em lata 10 estações e 20 minutos.  Da estação até à partida ainda é preciso andar 1 Km. No regresso aplica-se a mesma receita. Andar 1 Km, esperar pelo Metro e voltar ao hotel. Mais de 1 hora com a diferença que conseguimos ir sentados. 3,60€ para 2 horas de viagem. Sendo tolerável, quando comparamos com os anos anteriores, percebe-se que mais uma vez se prejudicaram os atletas.

- Alterações no percurso – Em termos gerais tudo o que foi alterado foi para pior. Já falei da partida, depois andamos por ali numas reviangas, a zona industrial é feia, não há qualquer interesse naquele percurso que se percebe foi atamancado na zona. Sobe desde, vai e vem. Depois entramos no percurso habitual e aqui não há muito a dizer. O que já era bom continua igualmente bom e o que era menos bom também.  Para o final estava guardado o contrário da cereja em cima do bolo. A 1Km da Meta subir novamente 200m da Avenida da Boavista para voltar a descer até à mesma rotunda, antes de finalmente podermos ir cortar a meta. Genial. Não havia outro local onde esticar um pouco a coisa? Era mesmo preciso meter desnível, dificuldade e piorar os tempos a 1Km da meta? Vêm-me à memória as palavras da organização. Um novo circuito mais rápido…. Isso mesmo!!!

- Chegada – A chegada é no mesmo local da partida. Aqui só vale a pena referir que se chega a um local sem qualquer interesse. Um enorme descampado alcatroado. Quando dantes a chegada era no Parque da Cidade com uma enorme zona verde à disposição e onde se podia passear um pouco descansar e desfrutar, agora estamos num terreiro de alcatrão. Com o sol forte que estava tivemos sorte em vagar um dos raros bancos à sombra de uma árvore. 

- Prémio de Finisher – Um colete de plástico, sem mangas e com costas de rede. Não sendo mau, o desaparecimento da tradicional garrafa de vinho do Porto foi a estocada final. A garrafa de vinho do Porto era “O” prémio que distinguia esta prova. O ano passado já tinha passado para o final, o que se aceita. Afinal era um prémio de finisher e fazia sentido racionalizar este custo desta forma. Agora fazê-lo desaparecer? Descaracterizou ainda mais a prova. Será que havia a real consciência do significado desta simples garrafa, o impacto e a imagem, a referência a um dos produtos mais emblemáticos da cidade? Era um custo? Não há almoços grátis. Tudo ali é um custo, pago por alguém. Foi possível durante 11 anos. Agora acabou-se. 

Resumindo, a Maratona do Porto agora começa e acaba em Matosinhos, a partida, chegada e percurso foram atamancados ao queimódromo, o melhor é ficar alojado em Matosinhos para se estar perto do local e evitar deslocações ou packs com transporte inimigos da carteira, e no final ganhamos um colete de plástico.

Tudo o resto continua igual, ou seja de excelente nível. Estes aspetos que refiro fazem confusão aos velhos que insistem em regressar todos os anos. Como velhos que são apegam-se a tradições, valorizam em demasia, rabujam e criticam, principalmente quando sentem que as coisas estão a mudar para pior. São pequenos pormenores dirão uns, são coisas que chateiam dirão outros. Sei que a Maratona do Porto que conheci, o tal cabaz que tinha de se manter para que a receita funcionasse, já não existe. Tudo o resto ainda lá está. Aguardemos pelas melhorias da próxima edição…

Do pouco que li a organização não precisou de ouvir qualquer opinião para formar a sua e afirmou que tudo correu lindamente e que o novo local e percurso são excelentes e para manter.


Voltarei? Não sei. Afinal há tanta coisa para fazer.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

As montanhas da minha vida


Bonatti!

Quem já fez o UTMB conhece este nome. É um refúgio de montanha, aos 2000 m com uma vista deslumbrante para as Grandes Jorasses que ficam do outro lado de um vale glaciar. Uma vista de fazer cair os queixos. Conseguimos ficar horas a admirar a imponência da montanha que faz parte do maciço do Monte Branco, cada detalhe, a imaginar como seria estar ali do outro lado. Parece tão perto, tão acessível. Ninguém diria que o topo está aos 4000 m, tal é a sensação de estar logo ali. É a dimensão da coisa que engana o nosso cérebro. Ao abarcarmos uma imagem tão grande que ocupa todo o nosso campo de visão o cérebro entra no modo "pfff, isto é tranquilo, subia por ali, ali deslizava até acolá..."

Bonatti, o nome fica instantaneamente no ouvido. Talvez por isso a Salomon tenha dado esse nome ao seu impermeável ultra leve. Imaginamos que o Bonatti foi um tipo, claro, um gajo que devia gostar das montanhas, ou da vista daquele sítio, para ter um refúgio com o nome dele ali. 


Gosto das coincidências que me levam a adquirir conhecimento que de outro modo me passaria ao lado. Afinal há tanta coisa para descobrir. A razão porque de repente descobrimos coisas novas está longe de ser um processo metódico. Pelo menos para mim. 

Tudo começou pelo nosso Tour do Mont Blanc no sentido contrário à prova. Primeiro consegui convencer o Trindade a não ficarmos em Courmayeur. Faríamos o Tour de abrigo em abrigo. Em vez de Courmayeur subíamos mais 1000 metros e ficávamos no refugio Bertonne. Quando foi preciso alterar o sentido da nossa volta já não fazia sentido ficar no Bertonne e escolhemos o Bonatti. Até porque eles foram muito mais simpáticos e prestáveis na hora de reservar. Conhecia o refúgio de ter parado ali no abastecimento em 2013, durante o UTMB.

A noite que passámos no refúgio Bonatti foi fantástica. Boa comida, instalações 5 estrelas, simpatia e profissionalismo. Imensas fotos do Bonatti nas paredes, muita informação. Deu para perceber que o Bonatti tinha sido um alpinista excepcional, old school, anos 50, 60. Um grande explorador também. 

O Bonatti voltou a surgir em Chamonix, numa livraria nas mãos do Trindade. Um exemplar em francês. "Montagnes de ma vie". Perguntei-lhe se conhecia a história dele, se valeria a pena levar o livro. A resposta foi a que mereci ouvir: "Epá o tipo tem um refúgio na montanha com o nome dele. Não há um refúgio Paulo Pires. Se calhar deve ter feita algumas coisas interessantes!"
Tunga. Já foste! Mas a vingança serve-se fria... "Vais levar?" perguntei. "Em francês não dá".
"Dá cá então" :)
Pimba! 7 anos de Alliance Française. Incha agora.

E foi assim que em retrospectiva acabei por conhecer o Walter Bonatti. Um alpinista excepcional, um homem que buscava os limites de forma incessante, muito à frente do seu tempo, mas acima de tudo com a sua ética e com uma coisa que se vê tão pouco e cada vez menos hoje em dia: uma integridade de valores e princípios inabalável. Quanto mais leio e pesquiso sobre quem foi Walter Bonatti mais fascinante é conhecer a vida deste homem que fez do Monte Branco a sua escola de vida. 

Não percebo nada de alpinismo, e mesmo depois de ler o seu livro pouco ou nada sei. O livro conta algumas das mais extremas escaladas que ele fez, muitas das quais ficaram míticas. É difícil para um leigo compreender como nos anos 50 alguém escalava aquelas montanhas com recurso a equipamento do mais básico que existia e em condições extremas de frio e debaixo de gigantescas tempestades, com temperaturas da ordem dos -30ºC. Algumas escaladas foram trágicas. Outras estiveram a um passo de o ser. 

Mas é sobretudo de superação e de ultrapassarmos os nossos limites na busca de conquistas que só o próprio compreende totalmente, que o livro fala. E nesse sentido é uma lição de vida, muitas lições de vida. Não que esteja escrito nesse registo. Longe disso.

Gostei muito de conhecer o senhor Bonatti e as suas montanhas. Uma outra perspectiva de um dos locais mais bonitos que conheço. Acho que não existe traduzido em português mas se pelo menos se sentem à vontade com o inglês, be my guests!


Deixo-vos 2 excelentes reportagens onde podem conhecer um pouco da vida de Walter Bonatti





segunda-feira, 19 de outubro de 2015

UTAX - A Lousã toda de uma vez nesta lição


Nota: Contem lições e dicas importantes


Por mais experiência que se tenha às vezes somos vítimas dos erros mais básicos. Por isso esta crónica é também uma lição para estudar e relembrar.

Se por um lado a experiência nos dá o conforto de irmos para a prova mais dura de Portugal continental com o espírito de missão de quem vai ter de encaixar mais uma ultra 100K no bucho, também nos atraiçoa.

Esta não é definitivamente uma prova para estreantes nesta distância. A Lousã é muito dura e para se desfrutar da experiência há que ir aos poucos. Provavelmente se forem de boa cepa até concluem a coisa no tempo limite mas com um preço demasiado alto. Há muita coisa para se entreterem por ali, antes de enfrentarem o boss do UTAX.

Partimos bem eu e o Rui. O plano era fazermos a prova juntos. Sem stress. Este ano já tenho a minha dose e estas coisas também cansam. Estou um pouco saturado de ultra coisas. Já não há épocas, intervalos para descanso, nada. É ir gerindo e descansando de umas para outras a fingir que servem de treino.

Nem 2 Kms, na saída de Miranda o tipo da mota engana-se e quem ia na frente segue atrás. Poucos metros durou mas o suficiente para o pessoal mais calmo seguir as fitas e o caminho correto. Grande granel, encaixa tudo uns nos outros. Os craques aceleram pelas coxias e tentam reposicionar-se na frente. Perco o Rui na confusão. Vou tentando chegar à frente e aproveito algumas subidas para recuperar posições. 

Chegámos à ribeira de Espinho, que estávamos a subir, ao contrário dos Abutres, e sigo com a Sofia Roquete o que é sinal que já estava mais coisa menos coisa no local correto, Contas feitas já em casa, passei em 62º em Gondramaz. Fico por ali a ver se o Rui aparece. No caminho passei o Luis Madeira que me tinha dito que o Rui não tinha passado por ele, portanto vinha atrás. O Rui não aparece e arranco devagar. 

Na véspera em conversa com o Vitorino Coragem perguntei-lhe o que era aquela descida a seguir a Gondramaz e ele explicou que íamos descer a outra ribeira mas só íamos fazer 500 m e depois voltávamos a subir para apanhar a pista de downhill para a Lousã.

Estávamos a sair de Gondramaz pelo estradão e aparece o Rui. Fixe. Seguíamos juntos com mais um casal. Ela era a 3ª da geral. Descemos para a tal ribeira e aviso-os que iríamos fazer 500 m e depois meter à direita para subir.

Aqui fica a 1ª lição.

1ª Lição - Segue sempre as fitas

Corolário 1 - Podes sempre seguir outras coisas que te apeteça, tipo placas reflectoras, placas indicativas do trilho, tudo o que quiseres seguir, MAS CERTIFICA-TE QUE CONTINUAS A SEGUIR AS FITAS.

Corolário 2 - És TU que tens de seguir as fitas. Nunca delegues essa tarefa nem confies em ninguém para a fazer por ti. Porque se o gajo não souber esta lição és TU que te vais tramar.

Aquela zona do trilho esta cheia de marcações refletoras, marcações de trilhos do Centro de Estágio de Trail de Miranda, etc. Com tanta coisa a reflectir por ali, em pelo menos 5 pessoas ninguém se lembrou de perguntar uma única vez: E fitas? Alguém está a ver uma única porra de uma fita?

De repente parecia que estava a escalar o Penedo dos Corvos, mas era de noite e pedra é pedra.... quando vejo as luzes de uma aldeia mesmo ali.... espera lá... isto não estava no mapa. Íamos subir e descer para a Lousã. GONDRAMAZ!!! De repente tudo fez sentido nos meus 3 neurónios. Não seguimos fitas, o trilho virou algures à direita, subimos ao Penedo dos Corvos e voltámos a Gondramaz. 4 km, 45 minutos perdidos e como se não bastasse, para a estocada final, tão cedo na prova em 45 minutos tinha passado toda a gente. Diz uma moça: bem vindos, juntem-se a mim sou a última. Verdade ou não foi um balde de água gelada que nos mandaram para cima. Acorda pá! Esta prova já acabou!

Voltar para trás à procura do erro era ainda mais estúpido do que o que tínhamos feito. Demasiado técnico. Lá aceitámos o convite e voltámos a fazer o mesmo percurso para perceber onde nos enganámos. Podia estar mais bem indicado? Podia. Podia não haver tanta porcaria pendurada por ali a reflectir? Difícil. Não fomos os únicos a cair no engodo mas as fitas estavam lá. À 2ª não falhámos.

Foi preciso mudar o chip e seguir atrás dos ultimos. Na subida ainda passámos alguns mas depois na descida para a Lousã, um single track de downhill havia pouco a fazer. Formavam-se filas ao mínimo obstáculo. Vimos muita gente que estava enganada na prova que se propôs fazer. E também ultrapassar à bruta para quê. Tínhamos quase 1 hora de atraso. Era outra prova que havia a fazer agora. 

Na Lousã encontrámos mais vítimas do engano. Chegámos em 220º quase no fim da tabela. Próxima paragem Cerdeira. Seguimos por trilhos do Louzan Trail. Não me apercebi que o Rui não vinha lá. O abastecimento numa fantástica casa de xisto e madeira da aldeia. Cheio que nem um ovo. Calor humano. Os óculos embaciam de imediato. Parecia o Mr. Magoo. Tiro os óculos e vejo o Hugo. Não estava a funcionar a prova e ia abandonar. Tento convencê-lo a vir connosco em modo desfrutar, nada. Já tinha tomado a decisão. 

Como, bebo, esvazio os ténis de pedras e quando procuro o Rui, nada. Que raio?!?! De repente lá aparece. Estava com uma dor na virilha que o estava a impedir de progredir. Na subida após o abastecimento a coisa não melhorou e separámo-nos. Em princípio iria abandonar em Povorais no Km 48. Que sina. Já o ano passado ficou pelo Km 50 por outros motivos. Não está fácil esta prova. 

Fico sozinho. Triste sina a minha. Sozinho e num sítio da classificação onde não conheço ninguém, não estou no meu ritmo, lá vou ter de gramar outra prova a solo. 

Depois de Povorais e de 2 belas canjas, já de manhã, subo ao ponto mais alto da prova e quase sou arrastado pelo vento, Rajadas seguramente na casa dos 100 Km/h, um trilho manhoso a subir e mesmo nas zonas mais brandas era impensável correr. O vento era tanto que era impossível prever onde os pés iam bater no chão. Qualquer rajada poderia arranjar um entorse ou um tropeção num tronco. Felizmente não estava muito frio. O meu relógio registou mínima de 16º o que parece impossível tal o frio que a ventania fazia sentir. Se estivesse frio a sério acredito que com aquele vento a prova teria de ser cancelada. Também acredito que com frio a sério haveria bombeiros e ambulâncias nos estradões desprotegidos das eólicas...

Eu lá ia prosseguindo na minha árdua missão. Seguia-se mais terreno conhecido de outros passeios, nomeadamente do habitual treino do amigo Vitorino. A descida para o Coentral, toda em grandes nacos de cascalho solto e depois mais descida até Castanheira de Pera, passando pela praia fluvial de Poço de Corga, que me traz boas memórias do verão de há 2 anos.

Se já vinha molhado e sem dúvidas para trocar de roupa na praia das Rocas, mais um local de fantásticas memórias de há 5 anos, uma chuvada no último km só confirmou tudo. Chego geladinho à praia das Rocas. Arranjo um cantinho e calmamente renasço do frio. Fracas condições. Sacos de troca espalhados por ali, balneário sem luz, chuveiros ali a acenarem para nós mas sem água quente, abastecimento num recanto onde 2 pessoas ao mesmo tempo já eram uma multidão. Sem pressa alguma ainda ligo à Dora a contar como as coisas estavam. Coisa rara nas minhas provas mas esta estava a ser uma prova atípica, talvez estivesse a estranhar. Procuro confirmar se o Rui sempre desistiu e fico a saber que o Marcolino desistiu, Ó desgraça. A coisa estava bera.

Enquanto me trocava o céu descarregava a sério. Assim que terminei a coisa acalmou. Olha, uma aberta. Siga. Mal passo a ponte da praia e era falso alarme. Começa a cair uma carga monumental. Bonito serviço. Vá lá que tinha o impermeável vestido mas mesmo assim fiquei um pinto. 

Nova subida dura, novo estradão de eólicas no topo. Chuva nevoeiro e um horrível vento lateral. Faltava descer até ao Talasnal num fantástico downhill onde os ultra raptor brilharam e eu ainda a conhecer os limites dos gajos nem acreditava na capacidade de agarre da coisa. Nitidamente ainda não tenho pés para a coisa :)
O Talasnal parecia uma urgência do Amadora Sintra nos piores dias. Só pessoal com a junta da cabeça queimada. Mal entro começa a chover torrencialmente. Não me posso demorar para não arrefecer ainda por cima vou ter de sair a chover. Falta subir ao observatório e descer para Miranda.

Sem grande história, mais estradões, mais eólicas, já não suportava o barulho das bichas a rodar, nem o raio do vento, Nem 5 minutos estive no observatório. Não havia nada para observar. Ainda saio lá de cima às 18h30 a pensar que fazia aqueles 20 Km em 3 horas, alguma margem para surpresas. A descida vai complicando pelo caminho. Estamos de novo em terrenos de Abutres mas a descer. Quando a coisa chega ao Cardeal com tanta lama a descer, lá vem trabalho a sério.

E é altura da 2ª lição.

2ª Lição - Não uses pilhas alcalinas no teu frontal XPTO com bateria de lítio

Corolário 1 - Vais-te tramar. Estás a contar com uma determinada duração que umas pilhas convencionais não suportam

Corolário 2 - Se o teu frontal permite usar pilhas de backup usa no mínimo as melhores pilhas recarregáveis de NiMH que encontrares

E em pleno Cardeal, mata serrada, breu total, desníveis e encostas de lama o frontal começa a piscar e a avisar-me: Já foste de novo!
Ca porra! Estou tramado com F maíusculo!!!
Vejo alguém com um frontal um pouco mais à frente. Rapidamente o apanho. Eu ainda tinha a bateria original com uma carga indeterminada. Já tinha feito 7 horas durante a noite e em Castanheira de Pera troquei por umas pilhas Varta novinhas. Homem prevenido, está bem... tramado. Não estou a ver nada que rime com prevenido que se adapte aqui....
Duraram 1h talvez.

O dilema era se voltasse a pôr a bateria quanto tempo duraria? Ainda faltava chegar a Vila Nova e depois mais 10Km que seguramente não seriam em estrada com candeeiros. Seguimos juntos. Se ele já não era muito expedito então a arrastar um gajo sem frontal... Sei lá quanto tempo demorámos a fazer a descida até Vila Nova, altamente técnica e toda em lama... que miséria. Ainda se juntou a nós mais um companheiro e parecia a procissão das velas, só faltava levarmos um andor.

Em Vila Nova volto a colocar a bateria e saio com o frontal no mínimo e a rezar. O trilho inicial já conhecia e pensava que íamos a Espinho e descer por onde subimos. Qual quê. Eu com o frontal no mínimo mal dava para ler um livro à noite na cama, mas não queria arriscar mais 1 lumen. Ficar outra vez às escuras naquele terreno nem pensar. Para o final estava guardado um arrozoado de reviangas e voltinhas, trilhos e trilhinhos, lama sem fim. Daqueles finais que estamos sempre a cheirar a meta, levam-nos até aos limites da cidade e voltam a meter-nos no trilho. As marcações já falhavam tanto como a paciência. Em minha opinião acho que são de evitar este tipo de traçados finais. As dificuldades devem estar ao longo da prova. Quando se mostra a meta a alguém já não há necessidade de esmifrar mais. O homem chegou caneco! Já chega!

E pronto. Quis contar-vos esta história porque acho que tem lições importantes. A ultima lição é que mesmo quando as coisas não correm bem é possível atingir outro objectivo. É só mudar o chip. Aqui já fica ao critério de cada um, Eu acho que é parte do desafio sabermos adaptar-nos, reconfigurar a máquina e lá vamos. Acredito que por vezes seja mais simples dizer "não estava bem" e não temos de escrever um artigo no blog cheio de dicas e lições. Por vezes há outras responsabilidades e expectativas. Mas eu funciono melhor assim. Tento transformar as dificuldades em desafios e lá vamos andando.

E foi assim que vivi o UTAX. Poderia ter corrido melhor?

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

UTAT 2015 - À descoberta da alta montanha e de outras realidades


Após ter feito por 2 vezes a prova dos 105 Km, este ano fui conhecer os outros dois percursos (42 Km e 26 Km) fazendo o Challenge (2 etapas em 2 dias). Gostei muito do desafio. Um excelente treino de alta montanha, passagem aos 3200 m, subidas exigentes, paisagens, como habitual, deslumbrantes. Aldeias isoladas ligadas apenas por trilhos que partilhamos com os habitantes nas suas habituais deslocações diárias. Caravanas de burros que transportam o que não se produz na aldeia, ou que sendo ali produzido se pretende vender noutros locais. A apanha das nozes a ocupar grande parte das aldeias. Uma viagem a um tempo perdido que já não faz parte sequer das nossas memórias. Outras formas de viver, despojadas de tantos bens materiais que não ousamos sequer imaginar,

Tão importante como participar em mais um UTAT, foi também a responsabilidade de apoiar a deslocação da comitiva portuguesa, quer antes da partida, ajudando a esclarecer questões, quer no local, na ligação com a organização, quer após a prova na, infelizmente, curta estadia em Marraquexe, que tive o prazer de organizar para toda a comitiva. 

Foi um grupo fantástico que apostou nesta viagem que é muito mais que uma prova de trail. Desde já agradeço, em nome da organização, a vossa participação. Acima de tudo sei que conheci novos amigos, o que não me admira nada porque é uma das características desta viagem e tão comum naquele país. Da minha parte e pelas vossas palavras percebo que desfrutaram de cada minuto o que me deixa imensamente feliz. O meu objectivo último é partilhar com todos a magia de Marrocos. Um país que nos cativa com a sua beleza natural e hospitalidade, com a sua atitude perante a vida, com o seu exotismo e que nos proporciona descobertas constantes. Acima de tudo destruir preconceitos parvos, ideias erradas e convicções absurdas. Marrocos é um país pacífico, totalmente seguro, extremamente tolerante e amigo. Podem circular livremente por qualquer rua de qualquer cidade a qualquer hora, não vão apanhar diarreia com a comida, os polícias não vos vão extorquir dinheiro, vão adorar a gastronomia local (o mesmo não podem dizer os frangos), e tanto outros mitos parvos que o desconhecimento produz e a vontade de não perceber propaga. Claro que, como em qualquer outro país e cidade, há criminalidade, há miséria, há doenças, há perigos, mas o que o país não merece são rótulos absurdos e redutores. Espero que um dia façam como eu fiz há uns anos, peguem na família, no vosso carro e partam à descoberta numas férias emocionantes para quem é apaixonado por conhecer outras culturas e não gosta de palas que o levam sempre aos mesmos sítios da treta, ano após ano, após ano. 

Este ano não sou eu que vos vou contar a história da viagem. Mas antes de passar a palavra e sem qualquer demérito para todos os participantes, que tiveram excelentes prestações e levaram o nome de Portugal bem alto, há 3 exemplos que creio que toda a comitiva concordará em enaltecer (e se não concordarem depois podem-me dar um calduço).

A Ana Ribeiro que mesmo debilitada e com grandes dificuldades, com o apoio do Luis Canhão, lutou e conseguiu terminar a sua prova. Esse querer foi premiado com um pódio e um primeiro lugar na prova de 42 Km. Bravo Ana. Um exemplo para todos. Quando queremos mesmo muito uma coisa, por vezes temos como recompensa muito mais do que desejámos. O teu 1º lugar foi brutal!

O Carlos Rodrigues que sonhou correr no Atlas e que concretizou esse sonho, Ainda longe de ser um arquétipo de atleta (o que acredito vá acabar por acontecer) conseguiu vencer a prova dos 26 Km, uma distância que nunca tinha superado. E foi ao Atlas demonstrar o que é resiliência. Amigo, já tens quase tudo o que precisas para vencer muitos outros obstáculos, O pouco que falta chegará, se continuares este caminho. Mas cuidado, o caminho é longo e duro! O que não é mau de todo porque dureza é o que a malta gosta.

E por fim o Filipe de Oliveira mostrou-nos o que é ser destemido. Apenas com o Hard Trail da Padela, que lhe conferiu os mínimos para participar nos 105 Km do UTAT, encarou o touro de frente e levou de vencida o bicho. Como todos lhe dissemos, fazer o UTAT com tão pouca experiência confere-lhe automaticamente a capacidade para enfrentar e vencer qualquer desafio em Portugal, para além de um ego gigantesco. E é totalmente merecido. Foste um valente amigo! Provavelmente não esperarias algo tão difícil (nem podias com a tua pouca experiência), mas a forma como desembrulhaste uma das provas mais difíceis de montanha, mostra que és tão ou mais rijo que as montanhas por onde andaste. Parabéns pela tua coragem! Grande exemplo. 

E agora tem a palavra a Filipa Vilar que melhor que ninguém vos vai contar a sua visão desta aventura. (e pensavam vocês que os meus textos eram longos heheheh)

Ultra Trail Atlas Toubkal: Day One - 29/9 (texto e fotos de Filipa Vilar)


 
Às 15h, o avião TP 1454 aterra no aeroporto Marrakech-Menara com 14 portugueses a bordo. É um aeroporto pequeno e simples, sem mangas de embarque.
Dirigimo-nos para o posto de controlo com o visto de autorização de entrada preenchido e aguardamos pacientemente que este seja validado. Quarenta minutos após a aterragem reunimo-nos com o membro da organização que nos veio acolher e encaminhar para o transfer que nos levará ao coração do Atlas.

A viagem é para Sul, em direcção a Oukaiimeden, com paragem no centro alpino francês (CAF), onde pernoitaremos 4 noites. A estadia neste refúgio de montanha era a alternativa "de luxo" a pernoitar em tendas no meio do vale desta estância de ski.
Quando chegamos dirigimo-nos ao edifício e somos divididos em duas camaratas (C14 e Ikkis 14). Depois de instalados encontramo-nos na recepção e descobrimos que o CAF disponibiliza gratuitamente rede Wi-Fi. Ora o que fomos descobrir...

Pelas 19h vamos explorar a área. Telemóveis em punho captam paisagens soberbas com o cuidado de enquadrar tudo o que a vista alcança na imagem.
Findo o reconhecimento, dirigimo-nos para as gigantes tendas que se encontram posicionadas em frente ao CAF, no meio do vale. Uma “passadeira vermelha” guia-nos para uma “cerimónia sofisticada”…o nosso jantar! A decoração é muito simples. Uma mesa gigante no fundo da tenda onde são colocados os pratos e loiças, 40 mesas redondas com capacidade para 8 pessoas, gigantes carpetes de tons avermelhados e 6 caloríficos. Tanto as mesas como as cadeiras estão “forradas” num tecido branco bordado com motivos florais.
Sentamo-nos em duas mesas contíguas e aguardamos que os auxiliares de apoio à cozinha tragam o banquete. Primeiro, um panelão de sopa harira, seguido de arroz com frango e legumes. Um pão grande e redondo, feito com uma farinha desconhecida mas saborosa, acompanha a refeição.
Regressamos ao CAF e dedicamo-nos ao vício. Por fim, o merecido descanso.



Ultra Trail Atlas Toubkal: Day Two - 30/9 (texto e fotos de Filipa Vilar)





As hostes agitam-se na camarata Ikkis incitando-me a levantar. Que noite tenebrosa! 2 panelas de pressão em pleno funcionamento deram-me cabo do sono.
De manhã o ritual seria sempre o mesmo…descer do beliche, calçar, apanhar a roupa a vestir (previamente escolhida e disposta num móvel em madeira dividido em 16 quadrados), segurar na bolsa com produtos de higiene e na toalha e dirigir-me ao wc/duches. Descobri que as mulheres tentavam manter a privacidade, resguardando-se numa zona com apenas dois duches e separada com uma cortina. A água era excessivamente quente, de resto, as condições de higiene e instalações sanitárias eram suficientes.
O pequeno-almoço pecava na variedade mas era de qualidade (chá marroquino, chá preto, café, pedaços de pão, doce de figo, doce de morango, doce de alperce, mel, figos secos e tâmaras).
A etapa seguinte era efetuar a acreditação nas provas e o controle do material obrigatório. Nós estávamos à entrada da tenda às 9h como anunciado, mas a organização só iniciou os procedimentos pelas 10h.
Um controlo bastante rigoroso, contrastante com a despreocupação em seguir os horários estipulados aliado a falhas de comunicação entre os voluntários e membros da organização.
Depois de “matar o vício” comunicacional com o Mundo, o grupo reúne-se e vamos fazer um passeio com o intuito de ambientar o corpo à altitude, vencer o ar rarefeito que teima em dificultar a respiração e conhecer os trilhos de saída e de chegada das diferentes provas.
Os almoços não estavam incluídos no pack da prova, como tal, almoçamos numa tasca da vila, uma bela tajine.
E resto da tarde foi puro lazer!
A competição ocupa um lugar quase primordial na rotina dos atletas que passam o ano a saltitar entre provas e países. Mas a competição não era o meu foco. Era sim desbravar o Atlas, contemplar um palco de beleza quase selvagem e usufruir do trail no seu estado mais puro.
Um mês após um problema de saúde extremamente grave ir fazer o Challenge do Atlas (42K 26K) poderia ser considerado insano mas, na realidade, eu estava a ouvir o corpo. Ele dizia-me para tentar! E eu sentia que era capaz.. Não era a mesma Filipa que um mês antes tinha aterrado no Aeroporto da Portela nem tão pouco o “corpo débil e enfermo” que vagueava por Chamonix.
Durante este mês recuperei a força extinguida pela doença, tive imensos cuidados alimentares, efetuei a medicação prescrita, repus as horas de sono, fiz treinos leves e fui-me mentalizando que estas duas provas seriam um teste, uma tentativa, e, se por algum motivo não conseguisse concluir o Challenge, a experiência valia por tudo.


Ultra Trail Atlas Toubkal: Marathon d`Atlas 42K D+2600 - 1/10 (texto e fotos de Filipa Vilar)

5H55: Tensão no auge, últimos preparativos...
6H: Soa a partida! Partimos em direção à montanha com as estrelas a vigiarem as nossas passadas. Os atletas dos 105, do Challenge e dos 42...todos juntos. Estava um frio de morte e o vento não ajudava a festa. Seguimos em estradão até ao K11 com D+530. Perto dos 2800 o dia começa a clarear e o sol a nascer. A visão é magnânime! Tons laranja forte contrastam com as diferentes tonalidades das montanhas. As mais próximas castanho escuro num degradé até as mais distantes. Sigo constante e forte. Faço os 11K em 1h35 com trote em alguns troços. Chegada ao primeiro controle é hora de descer 9K com D+1000. Os voluntários são uma animação e incentivam os atletas. Na descida, o sol começa aquecer o corpo. Ainda assim não retiro as camadas, apenas as luvas e buff. Inicialmente seguimos em estradão com muita pedra solta, até a separação das provas. A minha segue pela esquerda e passo por uma aldeia “escavada” na montanha. Atravesso caminhos de cabra, trilhos estreitíssimos, singles, uma zona arborizada e o rio Ourika num sobe e desce adorável! Cumprimento todos os locais e eles respondem afavelmente: "Ça vá? Fatigué?".
Homens, mulheres e crianças afastam-se para nos dar passagem. Locais à parte! Ainda me oferecem nozes acabadas de apanhar e tudo!
Chego ao primeiro abastecimento dos 20K com 3h de prova certinhas! Preparo-me para demorar! Ataco os alperces e os amendoins salgados. Peço para atestar os soft flask e tiro o softshell. A senhora não está interessada em ser rápida. Conversa e esquece-se de mim. Solicito alguma urgência e fica indignada. Com tudo isto demoro 7 min. Sigo. Não gostei muito do abastecimento. Muito fraco. Tinha apenas água, coca-cola, banana, batatas fritas, alperce seco, amêndoas e amendoins. Quando estou a sair vejo o Paulo Jorge descer. A minha subida é uma parte da descida dos 105K.
Encontro atletas com quem me cruzei no caminho, atletas que conheço do CAF, o Filipe e o Ricardo Diez e ainda o Eduardo e o Nevile um pouco mais acima. Todos fortíssimos! Sigo cheia de energia! Uma subida de 8K com D+1300 (K28 D+1785) onde atinjo o altitude de 3200 no colossal Tizi n´Tacheddirt!!! Woww!!! A subida é potente! Extremamente técnica, com diferentes graus de inclinação e num trilho com biliões (quantos biliões...) de pedras, pedrinhas, pedregulhos, rochas, areia...O calor começa apertar! Tenho 1,5 lt água...não me parece que vá chegar!
Começo a ouvir uma cascata! Boa! Paro 2x para beber água e em uma delas atesto o soft flask. A água é tão fresca!!! Tive o cuidado de apenas beber água de uma zona mais alta onde não vejo cabras a pastar. Outros atletas fazem o mesmo. Nunca páro. Sempre a subir no meu passinho.
Desde o início da prova que ingiro algo de hora a hora. E resulta na perfeição. O corpo nunca perde energia e consigo manter o ritmo. No topo dos 3200 encontro o posto de controlo médico. Demorei 2h30 a chegar. Agora seguem-se 6K com D-1000! Técnico! Agressivo! Num trilho muito estreito e onde a areia me faz derrapar muitas vezes. Por 2x quase que resvalo. A 3K do abastecimento, numa zona muito perigosa e que me faz saltitar bastante encontro um grupo de caminhantes. O último avisa os da frente que vou passar. Impecáveis! Chegam-se todos para o lado. E começam a aplaudir, dar força, desejar sorte!! Uma festa!! Nem sabia o que dizer! Só sabia dizer "merci!!!" Adorei aquele publico! Tentaram trotar comigo e ainda conseguiram uns metros. Depois deixaram-me seguir e disseram "you are the first"!!!
Atravessei uma estrada e desci novamente em trilho. Medonho!!! Nem havia quase trilho! Areia para derrapar! 1km bem bem complicado. MIUT? Comparado com esta zona é super seguro! Desemboquei na vila e segui por o caminho até chegar ao segundo abastecimento sito em Tacheddirt. Fizeram uma festa! Demoro 1h30 a fazer esta descida. Comi novamente alperces e amendoins. Atestaram os soft flask rapidamente, perguntaram se queria atestar o camelback e ofereceram queijo e/ou fiambre. Priceless!! O queijo não estava a mostra Foram super atenciosos, cuidadosos e eficientes. Informaram-me que no dia seguinte passaria novamente por ali. Despedi-me "see you tomorrow"! Subi 5 degraus e comecei logo bem!! Uma subida quase vertical! Bom...na verdade seriam 5K com D+600! Demolidora a subida! Calhaus e rochas para trepar!! Tipo Km vertical mais muito mais técnico e num trilho super estreito! As montanhas são rochas autênticas! Agrestes, totalmente expostas ao sol, arenosas e áridas. Esta subida coloca-nos em contacto com a sólida Jebel Anggour (de 3614 metros) mas ficamos pelos 2960 Finda a subida nem queria acreditar! Passei no controle e dei o número de dorsal. Mais umas fotos. Pronto...só faltavam 6K a descer até a meta com D-400. Inicialmente muito técnico nem trotar conseguia. Depois 1.5K de estradão para voar mas as dores no joelho esquerdo não deram tréguas e trotei em câmara lenta. Volto a entrar num trilho técnico mas no qual consigo fazer um trote nalgum troços. Os caminheiros são fantásticos! Deixam sempre passar e dão imensa força. Chego a uma zona plana. O vale tem um trilho pedregoso e o rio segue pelo meio da nossa rota. Faltam 3K. Bora lá correr/trotar menina. Consigo fazer esta proeza até a meta. Nem queria acreditar! Terra molhada em que afundo as sapatilhas, trilho corrível mas com pedrinhas. A 1.5K começo a perceber por onde vou chegar. As marcações são muito espaçadas e não dão confiança. Ocorreu-me N vezes parar e tentar perceber por onde seguir. As marcações são com uma tinta azul na rocha (há imensas rochas mas as marcações são muito espassadas e insuficientes). Avisto ao fundo as casas de Oukaiimeden e mais à frente às bandeiras vermelhas e o pórtico da meta. Sigo constante e umas lágrimas escorrem pela face. Felicidade pura!! Consegui! Venci a altitude, a caixa torácica aguentou, o coração conseguiu bombear o sangue que tinha e as pernas nunca falharam. Uma epopeia! Um Challenge sem dúvida! A 500 mts ouço o speaker dizer que se aproxima uma atleta feminina e colocam uma música para mim! Brutal!!! Nunca tal tinha acontecido. Uma música para a minha chegada! Ver o pórtico...atravessá-lo...priceless!!!
Com 9h02 totais terminei 42,67K com D+2385. Orgulho!!!


Ultra Trail Atlas Toubkal: Virée d´Ikkiss 26K D+1400 - 2/10 (texto e fotos de Filipa Vilar)

08h45: Desço com o Paulo Pires para o pórtico de partida. Esqueci-me dos bastões! Volto a correr para os ir buscar. Reencontrámo-nos e seguimos até à linha de partida. Conversámos com os restantes atletas do grupo que nos vieram acompanhar e com o Eduardo e Neville que tinham terminado a prova dos 105K.

Às 9h soa a partida. Corremos quase em plano 3K. Uma autêntica tortura! O coração quase a sair pela boca, os músculos das pernas acusar o empeno do dia anterior...manter a constância foi um teste a minha resistência mental! Até que finalmente o trilho começa a subir e posso dar uso aos bastões. Os meus salvadores!
A subida era a descida do dia anterior. 5K com D+400 divididos em 3 níveis. Um trilho estreito arenoso mas de andamento fácil, um trilho pedregoso mais inclinado e por fim um trilho com rochas e troncos para escalar um pouco mais. No topo da subida encontro o primeiro posto de controlo. Dou o número de dorsal, poso para a foto e começo a descer. Uma descida de cortar a respiração, rodeada por imponentes montanhas de cor ocre. Desço a medo porque a inclinação é acentuada. Sou ultrapassada por vários atletas mas não me importo. Prefiro ser cuidadosa e regrada na descida porque a partir dos 17K, necessitarei de toda a força para atingir os 2800 metros sem fraquejar. 4K de uma descida exageradamente técnica e "perigosa" culminam num trilho muito estreito mas corrível. Dou asas as pernas. Chego ao segundo posto de controle (último posto de abastecimento do dia anterior) e sou informada que o abastecimento é a 5K. Duvido logo. O meu GPS contabiliza 10K e segundo o perfil da prova, este situa-se ao K16.5. Sigo sempre a correr. Yeahhhh!!!! Atravesso duas aldeias, cumprimento todos os residentes invejando-lhes a vista, a pacatez, o despojo do materialismo, a simplicidade e constato (novamente) a inacessibilidade das gentes. A terra árida, povoada por pequenas matas, com grupos de cabras a roer o chão, transporta-nos para clássicos do cinema, cujos protagonistas encarnam vidas passadas em locais ermos, palco de aventuras e trilhos pedestres, mas na realidade, os protagonistas deste filme somos nós!
Contemplo sobrados coloridos pelas vestes que ao sol secam. E ao K17 encontro a tenda branca onde os voluntários calorosamente aguardam pelos atletas.
Cinco crianças estão a chegada do abastecimento a bater palmas e a gritar por nós. Maravilhoso!! O fotógrafo capta este momento. Eu a chegar, sorridente e os miúdos em festa. Para eles deve ser um acontecimento único no ano, ver tantos atletas, roupas diferentes, mochilas, bastões, os nossos procedimentos, rituais...a azáfama.
Este abastecimento permite-me tomar fôlego antes de prosseguir, hidratar bastante e ingerir suficientes calorias, afinal vou emergir em altitude numa subida difícil de "abarcar". Duas mãos cheias de alperces e uma de amendoins. O voluntário enche-me dois copos de água para ajudar.
E agora sim, vai começar a verdadeira dureza. 8K D+1000. A início um estradão largo que desemboca num trilho técnico. A paisagem é impactante! Areia fina, rochas escuras (e até lilases), troncos de madeira (alguns formam socalcos/degraus)...uma montanha que se eleva dos 2800 metros de profundidade, um oásis de vida berbere e trilhos vertiginosos.
Não temos medo de nos aventurar naqueles colossos? De assentar os pés em zonas quase sem trilho? Claro que sim! Todos nascemos com medo e é bom que o tenhamos. Por isto é que nos aventuramos. Porque conseguimos superar o medo, desafiar a vida, atingir um estado de plenitude imensa, tornar-nos "mais respeitáveis" aos olhos dos outros. Mas houve momentos em que pensei “e se sucedesse algo?...” Um trilho em que só cabe um pé a frente do outro…mete respeito!
Avisto as enormes bandeiras vermelhas. Estavam cada vez mais perto! Estas indicavam que o fim da subida estava próximo.
A experiência acumulada destes dois dias e a estrondosa força que descobri que residia em mim eram o meu ópio! Avançava forte e constante, capacidade de alerta no máximo e mantinha-me alimentada e hidratada, o que me permitiu passar mais de 10 atletas. A 500 metros de atingir o cume, um atleta senta-se no chão, exausto. Sinto-me impelida a dar-lhe força. E no meu inglês digo-lhe que o final da subida está mesmo ali, que ele a está a ver, que tem de pensar que em poucos minutos vai atravessar a meta, vai poder comer cuscuz ou pasta e que vai tomar um banho quente e aromático…e surte efeito!! Fico radiante!! Levanta-se e segue-me deveras debilitado.
Finda a subida encho o peito de ar e de orgulho. Troto na descida e olho para o relógio. Vou chegar mais tarde do que previ mas chego bem. A uns metros da meta, a equipa portuguesa aplaude-me, assim como, atletas sentados nas esplanadas e os locais. Chego à base e sou engolida por uma grotesca sensação de missão cumprida.
25,86K terminados em 5H26 com D+1380


Ultra Trail Atlas Toubkal: Day Five - 3/10 (texto e fotos de Filipa Vilar)

Se o pequeno-almoço dos dois dias de provas nos brindou com uma novidade: a banana, no último dia o espanto era ainda maior! Crepes!! Divinais!! (um pouco açucarados demais para mim mas ainda assim, deliciosos!).
Pelas 7h50, o grupo português reúne-se na receção do CAF e encaminhamo-nos para o autocarro que nos levará de volta a Marraquexe. Antes de subir para o autocarro faço uma pausa como que a saborear a recordação. Sinto-me num espaço sideral! De outro planeta!
A meio da viagem o autocarro tem um problema mecânico e somos forçados a parar à beira da estrada. O condutor tenta resolver a situação mas ao final de meia hora percebe que não é possível e solicita ajuda. E agora? Quanto tempo teremos de aguardar por outro autocarro?...
2h foi o tempo que aguardamos. Entretanto duas voluntárias que seguiam no autocarro, desesperadas com a hora de embarque, pedem boleia a um taxista. Quase ao mesmo tempo chega um jipe 4x4 para levar mais atletas para o aeroporto. Continuamos à espera que nos venham buscar…35 minutos depois chega um mini bus de 14 lugares e encaminhamo-nos todos afoitos para o mesmo. Mas, dois atletas estrangeiros e o vencedor do ultra trail e sua família ocupam 6 lugares. Não existe espaço para todos…desolador!
Apesar deste percalço, mantemo-nos "como equipa" e aguardamos a chegada de um transporte que permita que os 14 sigam juntos para Marraquexe. A manhã estava perdida! Enfim…enquanto aguardávamos, a galhofa imperou! Por fim, chega o transporte para “nos salvar”.
A carrinha pára na praça central e desperto do meu cochilo matutino. Está um bafo! Ainda ensonada vou buscar a minha samsonite.
14 Portugueses, em fila indiana, rumo ao endereço de um hotel de charme e qualidade, renovado recentemente, que o Paulo Pires fez o favor de arranjar. A 3 minutos da praça mais mediática de África, união e sintonia ao estilo marroquino aliado a uma decoração moderna e possante. O hotel está por nossa conta.
Depois de instalada, dirijo-me ao terraço. Que vista de sonho!
Entretanto o estômago dá horas, por isso, há que fazer uma paragem obrigatória. Dirigimo-nos para as portas de um dos melhores endereços gastronómicos da cidade. A carta apresenta vários clássicos marroquinos e propostas arrojadas ao paladar. Finda a refeição, vagueamos agora com toda a calma do mundo pela cidade primitiva.
Os sorrisos que nos brindam são uma mão cheia de boas recordações.
Marraquexe, a "cidade vermelha" sita no sopé norte do Alto Atlas, é um caldeirão fervente de etnias, religiões, cores, nacionalidades, estratos sociais, comerciantes, sons, cheiros, artefactos, vestes, animais, especialidades alimentares, meios de transporte, hotéis, bancas de rua, frutas...
O canto hipnótico dos altifalantes das mesquitas, muralhas e habitações de tons ocre, hotéis a cada esquina, azulejos que decoram as entradas das casas e os pátios interiores, candeeiros arco-íris, uma poeira suspensa no ar...esta cidade é um íman exótico que pulsa os sentidos.
A parte antiga da cidade, vulgo Almedina, são ruas pelejadas de lojas e comerciantes de rua com artes e ofícios tradicionais marroquinos. Desde bijuteria, tapetes e carpetes, tecidos costurados ou bordados, cerâmica e louça berbere de cores, formas e decorações exuberantes, peças esculpidas em madeira, objetos em metal com rendilhados, esculturas, pinturas figurativas, velharias, livros de literatura marroquina imersos em pó, calçado em bico, artigos em pele, blusões de design quase exclusivo, telecomunicações...Há lojas que mais parecem exposições...um incrível espólio marroquino! Nas ruas, uma confusão de pessoas, bicicletas, motoretas e carroças ameaçam, constantemente, a segurança dos peões! Andamos em ziguezague a tentar sobreviver a esta aventura mágica. Uma motoreta apita de um lado, passa um bicicleta a toda a velocidade do outro, aproxima-se uma carroça cheia de fruta, uma banca de pão no meio da rua esburacada, turistas que param bruscamente ao chamamento do comerciante...
A praça mais animada e movimentada de África – Jemaa el-Fna – é uma insana loucura! Encantadores de serpentes, músicos, acrobatas, contadores de histórias, dançarinos, tocadores de instrumentos (do mais banal ao desconhecido, tocam músicas barulhentas e extravagantes) e macacos amestrados animam durante o dia, onde todos os sentidos são apelados ao consumo desenfreado. E ao final da tarde, quando o sol se começa a recolher no horizonte, o coração de Marraquexe vibra intensamente. É então que surgem dezenas de restaurantes em bancas no meio da praça e todos reclamam ter a melhor cozinha da cidade. Mas é no Chez Aicha, que descobrimos uma verdadeira instituição gastronómica: uma cozinha variada e fortemente condimentada, com o típico cuscuz, a famosa tajine, a sopa harira, a pastilla, o merguez e o thé à la menthe.
Esta viagem jamais será uma memória remota por estas paragens...
O UTAT pode estar ofuscado pelo brilho mediático de lugares como Chamonix, Cortina, Zegama, Pirinéu mas quem lá vai descobre uma terra de sonho, uma relíquia marroquina que não se compra com dirhams, a pureza do trail, o vital esforço dos voluntários, um coração árido e ocre que nos impele a voltar.
A receita e o retorno mediático desta prova, que está no mapa das provas mundiais mais duras pela dureza do piso, altitude, condições atmosféricas e capacidade de adaptação a uma autonomia quase total, são diminutos comparativamente a provas como UTMB e LUT. As experiências e vivências são igualmente diferentes.
Em cada viagem há um prazer no planeamento, uma sensação de prolongamento…a viagem começa a ser vivida antes e ainda temos o durante. Mas esta…assumo dizer que deixará mais “marcas”...será sempre uma viagem exploratória em que se formou uma equipa de 14 pessoas cheia de energia, boa disposição, cordialidade e que partilharam momentos únicos, momentos que muitos mortais nunca experienciarão e, caso lhes contássemos, provavelmente não entenderiam a magnitude do que por lá se viveu. Mas nós sabemos…nós sentimos…e iremos sempre recordar. O “poker face” de cada um denunciava o que nos ia na alma! Todos formos campeões e isso é um feito motivo de grande satisfação.
Um brinde a momentos destes!


Ultra Trail Atlas Toubkal: Day Six - 4/10 (texto e fotos de Filipa Vilar)



O despertador não precisa de tocar porque o corpo acorda uns minutos antes das 6h. É o dia da partida...
Às 6h40 o grupo reúne-se no terraço para tomar o último pequeno almoço em Marrocos.
O dia ainda não nasceu...estamos na "penumbra" alumiados por coloridos candeeiros...
À hora combinada somos encaminhados para o táxi e 20 minutos depois de iniciar a viagem chegamos ao aeroporto.
Efetuamos o check-in, preenchemos o visto de saída, atravessamos o controlo (mulheres numa fila e homens em outra) e por fim, atacamos as lojinhas com o intuito de gastar os últimos dirhams.
O voo TP1453 parte com algum atraso, algo que nos habituamos em Marrocos. Hehehe!!
Assumimos os nossos lugares e voamos de regresso a casa.
Enquanto aguardamos que as malas cheguem ao tapete 7 combinamos novas aventuras, trocamos impressões sobre a viagem, definimos objectivos para o calendário do ano seguinte...
Até que cada um segue o seu caminho...o saudosismo bate à porta...

Há o momento de chegada
E o instante de partida
Quanta vida já vivi
Quanto resta a ser vivida?...
Quanto resta não interessa...interessa sim vivê-la!!!

Obrigada a todos os 13 com que partilhei uns sublimes 6 dias! O nosso grupo era fantástico! A boa disposição e a contagiante energia reinou!

Paulo Pires, não posso nem quero deixar de mencionar todo o trabalho, cuidado, atenção, preocupação e gestão que empregaste nesta viagem. Um ENORME obrigado e PARABÉNS!
Ficamos à espera da próxima.

Fábio Dias, obrigada pelo teu acompanhamento na minha recuperação.
Rui Runa, obrigada pelos conselhos alimentares para a prova.

Agora é tempo de recuperar e manter "os cavalos" quietinhos. Hehehe

FIM

Obrigado por esta magnífica reportagem Filipa!!!!