(voltar à 2ª parte)
O Paulo faz-me companhia pelas ruas de Courmayeur até ao início da subida, quando ainda dentro da vila a estrada começa a empinar a sério. Seguimos à conversa. Ele já conhece praticamente todo o traçado dali para a frente dado que fez a CCC o ano passado. A CCC é uma versão mais curta da UTMB que parte precisamente de Courmayeur e que faz praticamente os últimos 100 Km da UTMB.
Lá me foi explicando o que me esperava nesta 2ª fase. Que a subida era espectacular e que tinha gostado muito de a fazer, que lá de cima ia ver Courmayuer e depois era um planalto enorme ali aos 2000m. Claro que ele viu e sentiu o percurso de uma forma totalmente diferente. Já tinha passado um ano e temos tendência a só nos lembrarmos das boas sensações. Por outro lado a CCC começa ali, eu já trazia quase 80 Km de prova com uma noite sem dormir.
Mas dei o devido desconto e meti mãos à obra. É para subir? Toca a subir. Embora estivesse frio o ritmo da subida rapidamente me fez tirar e guardar o casaco. Seguíamos ainda por alcatrão a sair da cidade, as ultimas vivendas italianas muito pitorescas faziam-nos companhia. A cidade acordava lentamente e as pessoas iniciavam as suas rotinas de fim de semana. Courmayeur fica encostada ao Monte Branco no final de um vale, como se não houvesse mais saída. Dir-se-ia uma réplica de Chamonix. Depois de se subir o monte percebe-se a orografia do terreno e o percurso que vamos fazer. Vamos seguir por uma montanha paralela ao Monte Branco e separada por um vale glaciar lá em baixo. Esta parte do percurso irá proporcionar paisagens deslumbrantes. Mas para apreciar toda esta beleza ainda era preciso subir a tal montanha.
Rapidamente se acaba o alcatrão. Ainda está algum frio e o facto de ter tirado o casaco deixou-me um pouco desconfortável. O dia estava lindo e o sol já se anunciava, mas apenas nos cumes das montanhas. Nós íamos subir e o sol ia descer. Rapidamente iríamos estar ao sol a aquecer portanto era mais simples suportar algum frio. O trilho sobe floresta acima com uma enorme inclinação. Imensa gente quer a subir, quer a descer, com mochilas maiores, enormes, sem mochilas, é o paraíso das caminhadas por ali. A subida é tão dura como bonito é o trilho. Socalcos e degraus, a subir por uma floresta. De vez em quando pelo meio das árvores começa-se a ver Courmayeur lá em baixo. Anseio pelo momento que o Paulo referiu em que se ia ter uma vista fantástica de Courmayeur no vale. É sinal que se chegou ao cimo do monte.
E por fim a fabulosa vista e a respectiva fotografia de Courmayeur cá em baixo, 800m de altitude depois. Ainda bem que não tenho vertigens. Estas tiradas de 800-1000m de cada vez fazem cá uma mossa que eu não vos digo nada. Fiquei feliz de chegar ao topo. Pouco mais de 4Km desde lá de baixo e quase 1 foi vertical . 1h30 de ascensão. Boa!
Rapidamente começo a procurar o refúgio. Será aquele casinhoto? Nah. Mais uma pequena escalada e o Refuge Bertonne surge lá no alto. Percebo o Bertonne. Que paisagem arrasadora. Magnífico!
Encontro o Luis Nunes que estava com problemas intestinais. Hidrato-me bem. Já vinha cheio de sede. O sol ali em cima já ia bem alto e o calor anunciado já se fazia sentir. Uma coisa muito bem vinda na UTMB é a frescura da água. Em todos os abastecimentos há água a fartar. Não só de garrafa como de torneiras, fontes, bicas. Geladinha. Uma maravilha.
Dali para o refúgio Bonatti iam ser 7Km sem grande desnível. Trilhos um pouco irregulares mas perfeitamente corríveis. Tentei correr o mais possível embora começasse a ser penoso correr continuamente. Os pés começavam a acusar algum massacre e a ficar doridos. Passava alguns companheiros mais lentos mas aqui também havia muita gente em melhores condições do que eu para correr. Começo a sentir algum desconforto nos pés, vou precisar de fazer uma manutenção no próximo abastecimento. Normalmente se não intervenho nesta fase e insisto, é bolha certa. Felizmente o Refuge Bonatti estava perto.
Durante esta parte do percurso íamos sendo agraciados com uma vista fabulosa da parede sul do maciço central do Monte Branco. Separados por um vale galciar imenso, aquela imensa parede parecia um quadro vivo que ia mudando sempre que me ocorria apreciá-la. Ora com mais neve, ora mais verde, ora de rocha. Que deslumbramento. Lá em baixo no vale começava-se a vislumbrar uma estrada, algumas casas. Seria Arnuva?
Escusado será dizer que não éramos os unicos a usar aquele trilho àquela hora. Uma quantidade enorme de gente andava para lá e para cá. Grupos de malta, mais ou menos determinados, mais ou menos carregados, mais ou menos enganados, com mochilas, com biclas, de tudo um pouco se ia encontrando pelo caminho. A regra era aplaudirem-nos ou desejarem "bon courage". Os japoneses são os que mais me impressionam na forma de mostrarem respeito e aplaudirem o nosso esforço. A sua leve vénia e as palmas em sussurro são desconcertantemente genuínas.
Alguém pergunta a um jovem que se cruza connosco se falta muito para o Refuge Bonatti. Ele aponta para um chalet lá no alto (tudo fica lá no alto, por ali) e diz que são 5 minutos, a subir claro. É uma outra versão do Alentejo em que é tudo já ali.
Depois de chegarmos percebe-se porque o Bonatti fez o Refuge no alto. Já não lhe chegava estar a 2000m, subir mais aquele bocadinho de encosta ainda permite uma melhor visão do tal postal vivo que se avista do outro lado do vale. Vou-vos poupar a mais adjectivos, vão lá verificar. Refresco-me, recarrego com água fresquinha e fico um pouco por ali. Estou a acusar algum cansaço. Os pés a doerem-me começam logo a desmoralizar-me. Descalço-me, faço uma já necessária limpeza dos ténis para tirar pedras e terra, as meias estavam imundas, limpo tudo o melhor possível, ponho um pouco de NOK nas zonas que me estavam a doer mais e calço tudo de novo. Melhorei substancialmente. E também já me sentia com mais energia. Meto conversa com uns espanhóis que estavam a falar dos próximos Kms do percurso. Eu vou completamente às cegas. Tinha feito um mapa todo pipas, desdobrável, mas não impermeabilizei. Foi à ultima da hora. Meti na tal bolsa impermeável do dorsal com o telémovel.... bela treta. Logo em Contamines entreguei aquilo tudo a desfazer-se à Dora e pedi-lhe para secar... e meti o telemóvel num saco de plástico. Raios parta o material da treta.
Mas não é nada que me preocupe não saber bem o percurso. A ideia é gerir o esforço e fazer uma prova sem stress. Afinal é a minha primeira 100 milhas. Sei lá o que isto vai dar. Mais vale chegar folgado que morrer a meio. E em cada abastecimento está bem explícito o cartaz com o que se segue até ao próximo. Um boneco com o desnível e a distância. Obrigatório diria eu. Ao invés de se deixar esse tipo de informação ao cuidado de quem nem sabe bem do que está a falar. E depois a malta sempre a perguntar, quanto falta para o próximo? Sobe ou desce? Etc.
Já com mais ânimo ataco o resto do percurso até Arnuva. Íamos seguir um pouco mais no mesmo perfil e cota que nos tinha trazido até ali, até descermos de forma abrupta para Arnuva lá em baixo no vale. Aí estaria um bom abastecimento antes de atacarmos o ponto mais alto da prova, Grand Col Ferret.
A descida muito inclinada fez mossa. Os pés a doer. Era meio dia, o sol estava forte e esperava-me mais uma violenta subida de 800m. Não tinha muita fome, apenas sede. Estava sem energia. Depois de reabastecer bem, incluindo o saco de água, um tipo pergunta ao voluntário que me estava a ajudar como fazia para desistir. Ele lá lhe explicou mas tentou fazer-lhe ver que o pior já estava, que já tinha vindo até ali, que não devia desistir. Mas o rapaz mandou-o às urtigas. A decisão estava tomada. Não procurava aprovação. Safa, que mau astral... felizmente não sou dessas coisas.
Saco às costas e começo a escalar. Que raio se passa aqui? Mal consigo subir. Isto está mesmo mal. Que violência. Fico a pensar no outro tipo que desistiu lá em baixo. Olha do que ele se safou. Morria aqui já o gajo. Paro e perante o queixume geral e a dificuldade em progredir um companheiro informa-nos que aquele bocadinho ali é o de maior inclinação da prova. Ahhhh! Ok! Ainda não tinha parado para descansar em nenhuma subida da prova. Safa! Aproveito e meto um Coup de Fouet da Overstims. É um gel tipo bomba. Recomeço a subir e ou a inclinação melhorou ou o gel é mesmo bom. Acho que foram as 2 coisas. Já não parei mais até ao topo. E foi subir a bom subir. De dia vêem-se as formiguinhas coloridas montanha acima espalhadas pela encosta. Não conseguimos parar de imaginar o que ainda vamos sofrer para nos transformar-nos naquela formiga azul, e depois naquele pontinho onde já mal se nota a cor. Socorro!!! Concentra-te. Se calhar o melhor é subir, certo? Certo!
Ao longo da subida mais pessoal à civil anda por ali. Uns sobem, outros descem. Até deu para assistir a uma família a subir com os putos que diziam, ó pai já chega aqui, não? Não, vamos subir mais um pouco. Olha o teu avô ali em cima. Fez-me lembrar a anedota do puto que não queria ir para o Brasil, cala-te e continuar a nadar filho.
As subidas violentas têm algumas vantagens: não estamos a rebentar com os musculos todos da zona core, não estamos a dar cabo das articulações e não estamos a massacrar os pés. Também não sobra muito oxigénio para tarefas supérfluas, tipo, para que é que me meti nisto, estou um bocado cansado, etc. Resta apenas o sentido de missão, subir, subir e subir. E quanto mais depressa chegarmos ao topo mais depressa acaba o sofrimento.
E pouco mais de 1h30 depois estava conquistado o Grand Col Ferret. Depois ter ter perdido alguns lugares com a paragem mais prolongada no Refuge Bonatti (o único ponto onde perdi lugares durante toda a prova) estava de novo a recuperar posições e desde Arnuva já tinham ido mais de 60, estando agora já quebrada a barreira dos 900. Seguia em 898. Lá em cima a minha preocupação era agora a descida. Sabia que a descida era enorme. Sabia que íamos descer ao todo quase 21 Km. Uma brutalidade. O Sébastien Chaigneu e o Miguel Heras tinham falado nisto. Não é fácil ter um core poderoso que aguente com uma carga deste calibre sem sofrer muitos danos. E eu não tenho. Aliás, até há bem pouco tempo andei a sofrer com problemas na região abdominal. Estava apreensivo com a forma como iriam decorrer estes 21 Km, mesmo havendo o abastecimento de La Fouly pelo meio.
Por outro lado e por saber que não ia descer muito rápido, vejo uma nuvens por ali e tento antecipar algum arrefecimento. Vamos descer, entrar num vale, vai escurecer mais cedo. Paro e visto o casaco. Mas aqui enganei-me. O calor não nos abandona. Além disso estamos a descer, a temperatura vai subindo. Paro de novo e tento guardar o casaco para o ter mais à mão, não é agora é daqui a bocado. Ainda andei para ali com o raio do casaco às voltas 2 ou 3 vezes. Às vezes queremos simplificar e só complicamos.
A descida lá se ia gerindo. Às tantas apercebo-me que já entrámos na Suiça. Primeiro pouco ou nada mudou. As pedras, as árvores e as montanhas não têm nacionalidade, mas aos poucos lá se começam a perceber algumas diferenças. O pessoal das quintas começa a ter barbas e faces mais rosadinhas e a parecer o avôzinho da Heidi. Depois as aldeias e as casas. Depois as bandeirinhas e as alusões explícitas.
Só já queria chegar a La Fouly e ao reabastecimento. Estava um pouco mal tratado. Já ia naquela fase do dói-me tudo, tou cheio de bolhas, socorro, sei lá. O raio do abastecimento nunca mais. Sabia que era numa vila mas nunca mais havia meio de abandonar aquela cota alta onde andávamos a contornar a montanha. Viam-se várias vilas ao longo do vale e eu tentava que fosse aquela, ou então a outra, ou então pronto, está bem, a lá do fundo. Já estava por tudo. Quando por fim começamos a descer para o vale era um misto de felicidade com sofrimento.
La Fouly atinge-se por estrada, mesmo no meio da vila. Procuro o meu team, mas nada. O abastecimento estava calmo e muita gente estava cá fora à espera numa rotunda. Ninguém veio ter comigo, mau sinal. Era um abastecimento sem apoio, mas um pouco de conversa e de apoio moral ninguém me tirava. Ou tirava? Penso que devem estar a chegar. Vou comendo umas sandochas de queijo e de chouriço ou que raio era aquilo. Já não aguento mais aquela sopa salgada. Faço uma nova limpeza dos ténis, descalço-me, etc. E não aparece ninguém. Pego no telemóvel, sem mensagens, tento enviar um SMS a perguntar onde andam e vejo que estou sem rede. Que raio??!!? Sem rede? Estamos numa vila. É impossível. Faço um reboot à porcaria do telefone. Nada. A rede não quer nada comigo. Olho em volta. Uns espanhóis falam alegremente ao telemóvel. Que porcaria. Provavelmente tinham-me enviado um SMS a dizer que não iam estar ali por algum motivo. Não posso perder mais tempo. Sigo viagem ainda à espera que algum autocarro com eles fosse chegar a qualquer instante. Bahh! Siga. Em Champex vão estar de certeza. Espero...
Estive em La Fouly 38 minutos, e aqui passei as 24h de prova. Talvez me tivesse demorado menos tempo se eles aqui estivessem. Sem saber porque não apareciam fiz um bocado de tempo a pensar que ainda iam aparecer. Na realidade não tinham conseguido apanhar o autocarro de Champex para ali e ficaram à minha espera em Champex. Se soubesse isso na altura... Mesmo com todo este tempo a mais ainda consegui subir mais 10 lugares na tabela.
14Km nos separavam de Champex O percurso até Champex consisitia basicamente em continuar vale abaixo numa descida por vezes ingreme mas sempre em piso bastante aceitável que incluía até alcatrão e passagem por dentro de vilas e aldeamentos ou zonas residenciais. Esta parte foi, como não podia deixar de ser, de uma beleza impar.
Uma calma imensa abateu-se sobre todo aquele vale. O sol ainda vai alto mas no fundo do vale o dia acaba mais cedo. Passamos por pequenas aldeias e urbanizações que fazem jus à beleza Suíça. Encostas gigantes todas relvadas, casinhas de madeira, crianças a brincar por ali, famílias a passear. Tudo idílico. Só apetecia parar e desfrutar também daquela paz.
Às tantas 1 pequerrote vem ter comigo e pergunta-me o que é que eu queria beber. Respondo-lhe água e imediatamente dá a ordem para o mini posto de reabastecimento mais à frente que eu queria água. Quando chego perto da mesa 3 ou 4 mini voluntários estavam muito atarefados no seu mini reabastecimento particular. Mesinha montada com umas coca colas, copos, águas… uma ternura. Bebo a minha água, agradeço e afasto-me enquanto observo os miúdos completamente absorvidos com a sua brincadeira à séria.
Descemos pela urbanização e passamos por uma aldeia. Casas mais tradicionais agora. A lenha cirurgicamente arrumada nos alpendres e por vezes forrando de alto a baixo a parede das casas indica que ali já estão prontos para o Inverno. Sempre a descer até nos esquecemos das dores com aquela paisagem. Em breve se iriam acabar as facilidades. Num café da aldeia metiam-se connosco e antecipavam-nos a subida que lá vinha. E veio. Saímos da estrada principal e começamos a subir uma encosta. Floresta cerrada. Sabia que umas centenas de metros acima havia uma cidade com um enorme lago, Champex. Esperava que lá estivesse a minha equipa. Nem punha outra hipótese.
O trilho era impecável, ou não estivéssemos na Suiça. Embora estivéssemos no meio de uma floresta em plena encosta, nos cruzamentos de outros trilhos as placas indicavam tudo o que era preciso saber. Os nomes das localidades, as distâncias e tempo da viagem. Cruzávamo-nos frequentemente com várias pessoas, a treinar ou simplesmente a caminhar e íamos confirmando a distância em falta, como se isso aliviasse o nosso esforço. A subida para variar era muito inclinada e não permitia mais que uma passada vigorosa, por vezes apenas uma passada. Não havia meio de perceber como havia aquilo de ir dar a uma cidade com um lago.
Estávamos a subir uma encosta tão íngreme, não se vislumbrava o final da subida. Mas de repente e sem aviso saímos da floresta cerrada para uma estrada e começam-se a ver carros, chocalhos, gente a aplaudir. Mais um pico estava vencido e cheirava a abastecimento. O dia aproximava-se agora do final. A Dora e a Margarida vêm ter comigo, o Paulo surge logo de seguida com a bandeira de Portugal. Que felicidade. Também por poder falar com alguém. Seguimos juntos até ao abastecimento. A Mónica fotografa no meio do pessoal que aplaude.
O abastecimento de Champex era gigantesco e estava cheio de gente. Mal conseguia lugar para estacionar o esqueleto. Este foi o abastecimento onde estive mais tempo. Com calma comi 2 belas pratadas de massa, esta sim estava muito boa. Pão com queijo, Cocal Cola, enchi bem o bandulho que a noite que aí vinha não ia ser fácil. Reforcei o stock de barras salgadas e doces. Troquei toda a roupa que trazia.
Com a ajuda da Dora e da bandeira nacional, deitado no banco até as cuecas foram. Estava a meio deste processo, tapado com a única coisa que havia à mão, a bandeira nacional, a Dora ocupada a tentar trocar-me a roupa e a pôr creme, começo a cantar o hino para dar alguma solenidade ao momento delicado, diz o companheiro do lado divertido para a mulher dele, olha lá tu nunca me fizeste isto. Desatamos a rir e eu digo-lhe que basta uma bandeira e cantar a Marselhesa. Depois ficámos um pouco à conversa sobre Tête au Vent, o ultimo pico da prova, que também o preocupava um pouco. Dizia-me que nunca o tinha feito de noite, e que de dia era muito difícil. Quase todo em pedra, tinha de ser feito a saltar de pedra em pedra, trepar escadas e degraus, pedras e mais pedras… Fiquei avisado.
O serviço ali estava quase concluído. Trazia já bolhas na parte externa do calcanhar, um sítio que não protegi porque nunca fiz bolhas ali. Decido mudar de ténis para os Salomon Sense Mantra. O Heras não podia estar errado e como eram tão confortáveis, no máximo haviam de me aleijar em sítios diferentes dos Asics. Faltavam 45 Kms, haveria de conseguir resistir raios. Meto as meias novas, encho a zona das bolhas de NOK, calço os ténis, alivio tudo o que posso da mochila, deixando quase só o material obrigatório. Meto a mochila às costas e noto alguma diferença. Saio para ir ter com o resto do pessoal. Lá dentro só podia estar a Dora e um acompanhante que desta vez foi a Mónica. Fazemos uma mini festa e seguem comigo um pouco. O sol tinha-se posto e o frio atacava já em força. Fecho-me todo e sabe-me bem aquele calor. Normalmente saio dos abastecimentos cheio de frio. Mas ali estava todo seco, novinho em folha. Sabia que dentro de pouco tempo iria estar todo ensopado, fechado naquele calor. Mas estava a saber bem o momento, para variar.
Estou um pouco apreensivo com os 3 picos que resta vencer. 15 Km cada bicho daqueles, mais ou menos. A noite cai sobre Champex. Desejam-me boa sorte, dão-me ânimo. De facto está mesmo quase. Só precisava de vencer aqueles três picos. Vencer aquela noite. De manhã tudo estaria terminado, o sonho estaria concluído. Iria ter sono? Cansaço? Penso no pessoal que tem alucinações durante a noite e que luta contra o sono. Tinha tomado 2 comprimidos de Guaraná 1000mg, uma dica da Carmen Pires que levou para o Ehunmilak. Já tinha experimentado na nossa noite de treino Setúbal-Corroios e não sei se fez alguma coisa, sono não tive. Mas como foi apenas uma noite era difícil de tirar conclusões sofre a eficácia do Guaraná. Cada comprimido tem o equivalente a 2 cafés. 200mg de cafeína natural. O café não tem qualquer influência no meu metabolismo. Posso tomar uma bica e ir dormir descansado. Talvez 4 cafés ajudassem alguma coisa.
Sigo o meu caminho, o dever de missão é mais forte. Um ultimo adeus, um apertozito no coração e até já em Chamonix.
A noite chega cada vez mais depressa. Atravessamos Champex sempre junto ao lago. Não sei se por ser quase de noite, se por ir tão virado para dentro de mim mesmo, nem apreciei bem a beleza daquele lago e da cidade. Os olhos pregados nos companheiros da frente. Depois de Champex começamos a descer. Sempre a descer. Até doía ter de descer tanto para a seguir voltar a subir. Toda a gente segue a passo floresta abaixo.
Tínhamos já abandonado a estrada. Seguíamos em grupo em que alguns franceses iam à conversa. Até me estava a custar ir a andar naquele excelente piso a descer e mesmo indo ficar sozinho meto a correr. Devagarinho primeiro, mas a coisa lá aquece e suporto o ritmo. Fico sozinho e vou apanhando companheiros ao longo da descida. As marcações são excelentes e estamos sempre com uma à vista, pelo menos. Não há duvidas naquele estradão.
Sigo confortável até que abandonamos o estradão. A organização já tinha avisado há uns dias por mail que no cimo deste próximo pico, em Bovine, não ia ser possível ter o abastecimento de líquidos. Portanto deveríamos preparar-nos bem em Champex para 16Km sem qualquer tipo de abastecimento. Sem problemas aqui. De noite, com frio, as necessidades de hidratação são mais reduzidas.
A história da subida repete-se: dureza e exaustão, coração aos saltos no peito. É apenas mais uma das muitas. Sem fim. Como a noite. Encosto numa fila enorme de zombies que se arrastam montanha acima. O cansaço é já muito e o pessoal encaixa no ritmo do líder seja ele qual fôr. Sinto uns companheiros colarem-se atrás de mim. Pressinto que querem ultrapassar e não estão contentes com o ritmo daquele pelotão. Também não estou. O trilho é apertado mas na primeira oportunidade começo a correr trilho acima. Ultrapasso 10 talvez 20 de uma só vez. Como iam quase parados foi rápido. Fico satisfeito com a minha prestação. Quem tinha encostado atrás de mim aproveitou e apanhou a boleia. Nem sempre é fácil passar a subir aqueles declives. Meto a passo para recuperar do esforço suplementar e pergunto se querem passar. Dizem que está bom assim. Sigo o meu ritmo rápido com eles atrás. Rapidamente deixamos para trás aquele pelotão. Eu vou contente a liderar o nosso mini pelotão. Subida acima sinto-me forte e admirado comigo mesmo. Repetimos aquela cena com vários pelotões até ao topo de Bovine. Entre arranques e recuperações e 2 ou 3 trocas de palavras com eles o topo de Bovine chegou. Tal como anunciado não havia abastecimento. Uma cidade enorme brilha 1000m abaixo de nós. Seria Trient? Espero que não. Era a pique até lá abaixo. Não era. Começamos a contornar a montanha. Chega a descida e aviso os meus companheiros que sou mais lento a descer e que devem passar, mas aparentemente continuam satisfeitos com a minha prestação. A descida é simples e a única dificuldade é suportar a inclinação e as dores inevitáveis a descer. Começamos a ser passados por alguns companheiros que são mais rápidos e temerários a descer. O grupo desfaz-se e faço os últimos Kms da descida já em modo solo, sem pressão. Grandes degraus na parte final até desembocarmos em Trient. Uma pacata aldeia de montanha muito animada com pessoal à espera de amigos e familiares.
Não me demorei muito tempo em Trient. Sem apoio dos amigos, que só iria voltar em Vallorcine, rapidamente reponho os níveis e saio. Passaram 4 horas desde que saí de Champex. Aqui já navego a olhômetro. Só já sabia que faltava menos 1 pico. 2 picos para o final. 2 picos para o final. 2....
Uma das poucas coisas que falhou foi o carregamento do meu GPS. Aparentemente o carregador USB com 2 pilhas AA não tem potencia suficiente para carregar o Globalsat (aka Arival Spoq) com o mesmo em plena utilização. Nunca tinha testado este cenário e falhou. Tinha-o posto a carregar ao princípio da tarde e algures antes de Champex, depois de várias horas a carregar (menos do que o necessário)... apagou-se. Tadito. Não teve pedalada. Um ponto a rever para uma próxima 100 milhas. Ainda assim fez bem mais de 24 horas de registo. Portanto não tinha já quaisquer referências.
Penúltimo pico, penúltimo pico!!! Oba!!! Oba!! Uma repetição do anterior, com noite cerrada é difícil avaliar as diferenças. Um pouco mais duro na subida, ou seria eu cada vez mais cansado também? A única coisa digna de registo, para além de não ter percebido bem o percurso que fizemos, foi o facto daquela encosta ser bem mais exposta e com o terreno bem mais húmido. Muitas ribeiras atravessam o trilho. Acho que não passámos nenhum colo. Apenas subimos e contornamos uma montanha antes de descer para Vallorcine. Na descida tento correr um pouco mas começo a ser traído por uma fragilidade dos Sense Mantra. O terreno húmido. Muito escorregadias em terreno húmido. Pudera, são de verão. O Heras esqueceu-se de me avisar, bandido. Ainda ensaio umas escorregadelas até compreender o que estava a acontecer. Redobro os cuidados nas partes húmidas do trilho. Descida final brutal para Vallorcine. Brutal para os meus pés já muito massacrados, claro. Em Vallorcine está o Paulo à minha espera, grande festa!!! Tento demorar pouco tempo no abastecimento.
Vou demorar apenas 3 horas desde que saí de Trient até que saí de Vallorcine. Vou com 34h30m de prova. Há imensos abastecimentos que não paro de subir na classificação. Do 880º em Champex já vou em 709º. Não tenho esta noção na prova. Vou encontrando algumas caras conhecidas aqui e ali ao longo da prova o que me dá a sensação que sigo mais ou menos num ritmo de coxo constante. Mesmo sem grande orientação começo a ter a sensação que vou fazer bem menos de 40 horas. Convenço-me que poderei mesmo ficar bem dentro das 38 horas, o que era fabuloso. Falta 1 pico.São 3h20 faltam 18 Km para a meta. Já sinto a glória e o cheiro a meta daqui deste abastecimento. Saio a correr com o Paulo e sou invadido por uma onda de frio. Estou gelado. Saímos a correr. Tenho de aquecer. Passamos alguns gajos que seguem a passo. Não paro, não posso parar, tenho de aquecer. Alguns minutos depois lá retomo o controlo da situação. O frio abandona-me. Que suplício. Vou mais um bocado com o Paulo e combinamos a chegada. Ele volta para trás e vai apanhar o autocarro. O Paulo está super feliz com a minha prova e fico super feliz por ele também. Até já amigo. Obrigado pelo teu apoio. Obrigado MESMO!!! Vou fazer este ultimo pico e daqui a pouco acabo com esta porra!!! ESTOU FARTO DE SUBIR!!! Falta uma, falta uma de quase 900 m. Que sabor agreste, melhor agridoce. Tão perto e tão longe ainda.
Falta a temerária Tête aux Vents. Fico sozinho de novo, entregue aos meus pensamentos. Nem me lembro que vamos a caminho das 4 da manhã. Em breve o dia iria começar a nascer. A noite estava consumada. Nem sinal de cansaço ou de alucinações. Sono nem vê-lo. O corpo alimentava-se de cansaço e adrenalina. Dou por mim a chegar perto da base da montanha que íamos transpor. Mesmo em plena noite a visão é assoladora. Uma parede gigantesca até onde a vista alcança, até onde o cume se funde com a noite, está à minha frente. A montanha é mágica. Parece uma árvore de Natal. A forma triangular... e está cheia de luzinhas de cima abaixo. Luzinhas que cintilam pela árvore acima. Dir-se-ia uma grinalda. Apagam e acendem. Tantas luzinhas. Tão lindas as luzinhas. Que magnífica foto que era com um tripé e uma máquina de jeito. Tento perceber até que altitude se vêem. Demasiado alto. Que visão atroz. Quem me dera estar lá no alto, no cimo da árvore. Mas não é possível. Vou ter de vencer aquele monstro final com as minhas pernas.
Em breve iria perceber afinal o que dizia o meu amigo sobre saltar de pedra em pedra. E logo desde a base temos a resposta. Ao contrário de toda as outras montanhas aquela parece feita de pedra. A quantidade de pedra é terrível. Quase não sobra espaço para terra. Tudo é pedra, socalcos, degraus, subir a pique. Os bastões ajudam mas por vezes quase desequilibram. Nalguns locais o perigo é grande. Um desequilíbrio, uma escorregadela resultam no mínimo numa valente queda e na pior das hipóteses.... nem pensemos nisso. Triplico o esforço. Quadruplico a atenção. A ideia de algo correr mal naquela pedra toda não me vai abandonar tão cedo. Subo bem e passo alguns companheiros, mas vou já muito sozinho. Foi a subida mais penosa. A ideia de que algo ia correr mal tão perto do final matracava-me na cabeça e parecia um pesadelo acordado. Tudo somado era um esforço enorme. Quanto mais se subia mais havia para subir. Já não se conseguia ver a base da montanha mas continuavam-se a ver luzinhas pela encosta acima. E mesmo depois de chegar ao ponto mais alto o colo que tínhamos de vencer estava muito longe. No cimo começa-se a ter vontade para correr mas era tudo em pedras, aos saltos. Muito desgastante. Não vejo a hora de passar o colo. O que haveria do outro lado? Como seria a descida? Um estradão lindo até Chamonix? Claro que sim, claro que sim. Ainda antes do colo vou admirando a vista no horizonte. O Monte Branco ali à frente. A silhueta, pelo menos. De vez em quando uma ténue luz isolada no cimo da montanha do outro lado do vale. Quem anda ali? São 5 da manhã. Estes gajos são doidos!!! Nem a esta hora dão descanso à montanha? Que vício, senhores! Li algures que se pode acampar por ali desde que de manhã não haja qualquer tenda montada ou vestígio da mesma. Parece-me bem.
Passo o colo e a pistola encosta ao meu dorsal pela penultima vez. Quase 2h30m a subir de pedra em pedra. Mas agora era sempre a descer. O que nem sempre é bom. Penso na família e no Paulo. Devem estar a preparar as emoções. Só me falta descer. 5h45, faltam 10Km a descer, 37h15 de prova. Tudo iria depender do piso destes Kms finais.
Felizmente na altura ia sem qualquer noção de horas e tempos. Só ia sabendo os Kms que faltavam. Assim não tinha outro stress que não fosse concentrar-me no terreno. E bem ia precisar. A vista era linda. Se antes do colo tinha tido os cumes do Monte Branco recortados num céu de pré-alvorada que faziam as delícias de qualquer um, daquele lado via-se todo o vale de Chamonix ainda com as luzes acesas e a noite como pano de fundo. Que espectáculo. A visibilidade era perfeita e avistavam-se kms e kms sem fim. Inesquecível associado à emoção cada vez maior do desafio estar vencido.
A descida mostra logo o que tinha para dar. Pelo menos até ao ultimo ponto de abastecimento líquido em La Flégère. Era a mesma pedreira mas a descer. Raios. Mas já se sabia claro. Encosto num pelotão de pessoal. Lá vou gerindo os saltos de pedra em pedra como posso. O pelotão ia lento de mais, mas ao contrário das subidas, aqui não arrisco. Não vale a pena. O cansaço é muito, qualquer falha, qualquer escorregadela, qualquer pedra mais solta poderiam deitar tudo a perder. São apenas 3,5Km até La Flégère, pode ser que ali a coisa mude. Seguimos lentos. Mais companheiros se juntam atrás de mim. Todos devíamos ir a pensar no mesmo. Ninguém se afoita e seguimos em comboio quase até La Flégère.
2 únicos pensamentos me acompanhavam. O de ir conseguir terminar o Ultra Trail do Mont Blanc e o de que algo poderia correr mal em qualquer desatenção e de não ir conseguir terminar o Ultra Trail do Mont Blanc. Morrer na praia em plena montanha, a 10Km da meta. Por uma parvoíce qualquer, atraiçoado por um calhau. Entre estes 2 pensamentos o dia vai clareando. Começa-se a perceber o posto de abastecimento em La Flégère. Uma tenda, o ultimo controlo do dorsal. Umas bebidas rápidas, não há muito mais a fazer por ali. Faltam 7Km mas também faltam descer 800m de altitute. 800m de altitude em 7km…. O cérebro ainda conseguia fazer contas. Uma inclinação de quase 11,5%... E eu a pensar num lindo estradão final ladeado por frondosas árvores que nos iriam guiar numa suave descida até Chamonix. Nada disso!
Vou com 38h08m em 680º. Já nem numa pista de atletismo eu faria aqueles 7Km em 50 minutos. Não o sabia naquela altura mas as 38h e tal já eram impossíveis. Claro que isso interessava tanto como a côr da camisola do tipo da frente. Nunca pensei que fosse possível fazer a prova em 38h. Era só outro sonho.
Depois de vencer um forte desnível lá começámos a provar a descida. Estradão largo de cascalho solto, inclinação brutal. Mal se consegue correr. Dói tudo. Insisto. Não dá para ir a andar. No meio de tanto cascalho há uma zona por onde todos tentam ir com menos meia dúzia de calhaus. É o massacre final. É preciso chegar aqui bem fresco para atacar aquela descida como ele merece ser tratada e não a gerir as dores. Resigno-me e sigo a fingir que corro enquanto travo a passada para não ir a rebolar até lá abaixo. Passo alguns companheiros que ainda vão a sofrer mais enquanto pessoal fresco que nem um pêro passa por mim como se estivesse parado.
Quando saímos do estradão e metemos por um trilho de caminhada que segue aos Zs montanha abaixo a coisa ainda agrava mais. Um misto de terra, cascalho, grandes pedras soltas e raízes de árvore no chão. Ponho as dores de parte e tento seguir o mais rápido que posso a ziguezaguear montanha abaixo, a escolher cada passada. Arrisco, começo a tropeçar. O cansaço já não me deixa levantar muito os pés. Tropeço constantemente, quase que vou ao chão uma vez, duas vezes, três vezes. Numa curva apertada derrapo e vou mesmo ao chão. 160 e tal Kms e acabo por cair. O aparato foi grande devido à inclinação e devido a ir a correr, mas as consequências foram nulas. Felizmente. Logo 2 ou 3 companheiros que seguem atrás de mim ajudam-me a levantar, perguntam se está tudo bem. Pusemos um enorme calhau no sítio onde estava. Quase que rebolava por cima de mim. Largo de novo a correr. Só meto a passo nos sítios em que o cascalho me magoa demasiado os pés já muito massacrados. Finalmente o piso começa gradualmente a melhorar. A inclinação mantém-se elevada e faz-me doer os abdominais correr com tanta inclinação. O ideal era desembestar por ali abaixo e não ir a travar. Mas que articulações suportavam isso nesta altura? As minhas não.
A descida aproxima-se do final. Acaba quase à entrada de Chamonix. Vejo o Paulo. Loucura total. A felicidade invade-me. A mim e a ele. Seguimos juntos. Faltam talvez 2 Km. Pergunto-lhe as horas para fazer umas contas. Mas já nem consigo fazer contas. O Paulo diz que fiz uma prova fantástica que estou muito bem. Vou ficar bem abaixo do tempo que tinha estimado.
Sigo forte para a meta. Acelero e passo um companheiro japonês. Acelero mais para garantir que fica mesmo para trás. Seguimos a correr à conversa, talvez a 5m/Km. Estou um pouco cego pela emoção. Quero acabar depressa. Como se tudo aquilo fosse fechar e não esperassem por mim. Vejo a Dora, a Margarida, a Mónica e a Manuela. Festa. Falta um curva. Dizem-me para pegar na bandeira e não vejo a bandeira grande. Só vejo uma pequena na muleta da Manuela. Pego na muleta com a bandeira e sigo para a meta. Que final perfeito para um coxo. Cortar a meta com uma muleta com a bandeira nacional. Em grande!
Os amigos juntam-se comigo na meta. Fotos e mais fotos. A organização dá-me os parabéns e entrega-me o colete de finisher. Estou feliz da ponta das unhas negras ao ultimo dos cabelos. Todos os amigos festejam e celebram. A minha prova mais longa de sempre tinha chegado ao fim. Tinha concluído o UTMB. Um sonho que começou a 18 Janeiro com o resultado do sorteio e que acabou às 7h53 do dia 1 de Setembro em Chamonix. 39h22m32s depois estavam concluídos os 168 Km desta aventura. No princípio deste ano estava eu parado em fisioterapia com uma lesão no adutor e um desequilíbrio muscular na zona abdominal . Falhei provas, recuperei muito lentamente, preparei-me de forma deficiente. Sempre com receio de não recuperar a tempo, de não ter tempo de treinar o suficiente para este desafio.
Sinto um alívio enorme. Não me calo um bocadinho. Vou comer e beber umas cervejas para o reabastecimento. A alma transborda de felicidade. Sinto também a felicidade dos meus amigos por eu ter acabado bem. Pomos a conversa em dia. Há 2 dias que não falamos disto e daquilo. Eu conto aventuras, eles explicam como correu a prova do ponto de vista deles. Estou nas nuvens e só desço à terra quando começamos a dirigir-nos para o apartamento. Eram apenas uns 200m da meta ao apartamento, felizmente.
Depois de um sonhado banho, dormi um pouco de manhã. Mas o corpo embora cansado está ainda muito agitado. Acordei à hora de almoço sem ter dormido grande coisa. Um sono agitado apenas. Almoçámos e fomos gozar os últimos momentos daquela terra mágica. Todos merecíamos o preço algo exorbitante que era subir no teleférico aos 3842m de altitude. O dia estava bonito com uma nuvem ou outra. Lá fomos todos mais o meu colete de finisher passear. A cidade estava cheia de finishers e de coletes que se arrastavam de forma empenada. Foi com pena que nos tivemos de despedir daquele paraíso. Só o facto de irmos ainda ficar mais um dia em Genebra nos ajudou a suportar a hora da despedida.
Relativamente à prova pouco mais soube. A minha equipa tinha andado atarefada a seguir-me e também não estava informada. Tínhamos mais que fazer do que ligar à net e tentar perceber tudo o que tinha acontecido. Só depois a pouco e pouco fui percebendo, quem tinha ganho, quem tinha desistido, como tinha corrido a prova a um e a outro. Fiquei triste por muitos amigos terem desistido. O facto de estarmos 2 dias a correr impede-nos de perceber o que de facto aconteceu, como correu a prova de uma forma geral.
Só já em Portugal quando comecei a processar tudo o que se passou, os tempos que fiz, os lugares na classificação, só aí me dei conta que tinha feito uma excelente prova. Nunca me passaria pela cabeça que atrás de mim ainda vinham mais de 1000 companheiros. Era isso que significava o meu 672º lugar entre 1686 finishers e 2469 que partiram, 273º da minha categoria da qual partiram 986 e conseguiram acabar 655. Superei largamente a minha expectativa. Arrisquei um pouco ao fazer as minhas primeiras 100 milhas num evento desta dimensão. Mas tudo acabou bem e fiz muitas pessoas felizes e orgulhosas, a começar por mim.
Agora sei que podia ter dado um pouco mais de mim nalguns sítios onde me contive com medo de não ter energia no final. Na realidade fiz uma prova serena e sempre com algum receio do que ainda faltava. Mas provavelmente irei voltar para tirar isso a limpo… quem sabe….
Resta-me agradecer à minha família e aos meus amigos Paulo e Manuela. Foram uns dias magníficos que passámos. Sei que todos adoraram, não só a prova, que acaba por ser um pouco cansativa de seguir (na realidade mal dormiram também naquelas 2 noites), mas toda aquela semana que passámos juntos e que ficará para sempre registada na nossa memória.
Espero que este história vos tenha inspirado a perseguirem os vossos sonhos e objectivos. A encararem os vossos desafios sem medos. A serem determinados na conquista dos vossos picos. Um a seguir ao outro. Como no UTMB.
Obrigado também a todos os que seguiram e vibraram com a minha prova. Foi para vocês também que escrevi este relato. Para saberem o que esteve por detrás de cada post no facebook, de cada twit. Aos que correm, espero que um dia possam desfrutar desta ou de outra prova de igual calibre. Esta prova é única no mundo do trail. Não é a mais dura, longe disso, mas é sem qualquer dúvida a prova suprema do Trail. Pelo local, pela organização, pela quantidade de trailers de todo o mundo que participam, pelo ambiente, e por tantas e tantas coisas que a tornam única. Um verdadeiro sonho que vivemos.
Uma ultima palavra para os que estão a pensar fazer o UTMB e para os que não estão também. Esta não é uma prova para super atletas. Os super atletas são os que fazem menos de 30 horas. Esta é uma prova para atletas absolutamente normais. É uma prova para quem gosta de montanha e consegue tirar prazer de 40 horas a desfrutar de natureza. Qualquer pessoa que tenha adquirido os pontos mínimos para concorrer, e se tenha mantido em forma, consegue perfeitamente acabar esta prova. Reparem que eu fiquei a mais de 6 horas do tempo limite. Podia ter dormido 1 ou 2 horas, podia ter andado ainda mais, podia ter feito as subidas bem mais devagar. E ainda assim acabar bem dentro do tempo limite. Tal como todas as outras faz-se com 10% de preparação física e 90% de preparação psicológica. É difícil? Sim, claro. É dura? Muito dura. Subidas gigantescas. Não temos subidas destas em Portugal, ou pelo menos não temos muitas. Aconselho a fazerem os vossos 7 pontos incluindo uma prova fora de Portugal onde encontrem paredes de mais de 1000m para escalarem e assim terem uma boa introdução ao tema. Também convém certificarem-se que conseguem passar sem qualquer dificuldade dos 2500 m de altitude. No
UTAT, por exemplo, têm de passar aos 3500m e é uma excelente introdução quer à altitude quer às subidas violentas. De resto é avançarem sem medos. Basta sonharem e irá acontecer.
E agora vão treinar. Para a montanha se fazem favor!
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Às minhas princesas |