É um local mágico aquele onde nos encontramos. A sensação de estarmos a viver um sonho torna-se mais real à medida que nos aproximamos daquele vale fantástico de Chamonix (diz-se Chamoni, o x é mudo). De repente as montanhas ficam gigantes e Chamonix encaixada no fundo do vale a 1000m de altitude está ladeada por enormes paredes, que chegam aos 3800 m de um dos lados e do outro aos 2500 m
A chegada ao final do dia com as luzinhas da vila a acenderem-se nas casas de madeira e foi amor à primeira vista. É impossível não nos apaixonarmos de imediato por aquele local. Do lado da Aiguille du Midi(3800m) os cumes brancos com neves eternas e um gigantesco glaciar que desce montanha abaixo dão o toque final nesta obra de arte que a natureza desenhou por aquelas bandas.
A montanha é omnipresente e por quase toda a cidade basta levantar a cabeça para que os cumes branquinhos nos cumprimentem de volta. Sente-se uma satisfação enorme pelo contraste daquelas duas realidades.
Com o nascer do dia seguinte descobrimos a outra face do sonho. Com um tempo magnífico o sol acende toda aquela neve e o cume da montanha fica ainda mais bonito. O contraste com tudo o resto intensifica-se, o glaciar que desce a montanha ganha vida e parece que vai chegar cá abaixo e engolir Chamonix e é impossível não soltarmos um Uaaaauuuu!!! quando se vê aquele cenário pela primeira vez. Depois de o termos tentado, em vão, capturar com todas as máquinas fotográficas disponíveis, lá nos resignamos e continuamos a descoberta.
As ruas estão pejadas de lojas, bares e restaurantes. Como continuamos num sonho, as lojas não são da Zara nem da Osho, nem sequer da H&M. Que me perdoem as gajas, mas por uma vez alguém fez uma cidade com ruas e ruas de lojas de trail, caminhada, escalada, alpinismo, etc. Há lojas das marcas de topo, lojas multimarca, lojas gigantes onde entramos e não apetece sair. Todas as gamas, todos os produtos, marcas desconhecidas, tudo. As mulheres aproveitam para se fazerem compreender. Estão a ver como é? Não fosse pelos preços podia-se vir fazer o UTMB e comprar todo o equipamento por cá e ainda se levava muita coisa a mais só para aproveitar.
Para completar o sonho resta o enorme evento que estava a tomar toda a cidade de assalto. Na noite em que chegámos ainda fomos brindados com a partida da PTL, essa gigantesca aventura de 300Km em equipas de 2 ou 3 atletas. Os aventureiros apareciam de todo o lado e cruzavam-se connosco a caminho da partida. Olhava apreensivo para aqueles doidos, tentava perceber o que levavam nas mochilas, pouco maiores que a minha ou nem por isso. Como iriam suportar 4 ou 5 dias em autonomia total de um percurso ainda mais duro que o nosso. Um misto de respeito e fascínio invade-nos. Entre eles reina uma boa disposição que não consegue esconder o nervosismo do aproximar da hora da partida. A PTL não tem classificação. Quem chegar chegou. É o puro espírito de aventura em montanha. Assistir à partida foi uma enorme emoção. E lá foram. 80 equipas, cerca de 200 atletas.
No dia seguinte foi dia para sentir um pouco o que é a organização de um evento desta dimensão. Já tínhamos verificado o espírito da coisa. Já tínhamos percebido que toda a cidade participa no evento. Em casa, através do site e pela amostra de todo o material que a organização põe à nossa disposição já tinha percebido que este é um mega evento organizado de forma irrepreensível. Tudo está pensado. 11 anos para praticar. Esta organização soube crescer e está completamente à altura de receber vários milhares de atletas e as suas famílias ou amigos. Para além de tudo estar pensado e fluir de forma eficaz, as pessoas são de uma simpatia extrema, as excepções são tratadas de forma eficaz. Como formiguinhas aos 2000 voluntários juntam-se seguramente muitas outras centenas de pessoas que de forma mais profissional ou contratual vão montando o puzzle de forma perfeita.
A feira do evento é também um ponto alto. Embora os preços não sejam nada de especial e por vezes até bem exagerados, todas as marcas lá estão representadas. Mais um sítio para nos perdermos horas a fio. Centenas de acessórios, as ultimas novidades, todos os produtos de trail de todas as marcas. É irresistível. As lojas da cidade competem com a própria feira pois pouco ou nada há naquela feira que não esteja também à venda nalguma loja da cidade. Por toda a cidade as lojas fazem 15% a 20% de desconto aos participantes nalguma prova do UTMB. Na feira também há descontos. É um apelo irresistível a comprarmos tudo e mais alguma coisa. Que desgraça!
Ao fim de 1 ou 2 dias já conseguimos movimentarmos bem naquele sonho. O apartamento que alugámos, mesmo no centro da cidade junto à partida, é impecável. Não nos falta nada. Desde máquina de lavar loiça passando pelo Wifi e acabando na RTP Internacional.
É como se estivéssemos em casa. O supermercado a 50m é um pouco mais caro que os nossos mas permite ainda assim contrariar um pouco os preços de ir comer fora. Em breve iríamos dar início aos nossos objetivos. O Paulo ia fazer a TDS (110Km) na 4ª de manhã.
Dificuldades logísticas não nos iriam permitir assistir à partida em Courmayeur (Itália), do outro lado do Monte Branco mas onde se chega rapidamente passando pelo túnel do Monte Branco. Mas iríamos partir de manhã e usar o serviço de autocarros da organização: uma infraestrutura montada de propósito para seguir as provas, com horários adequados a seguir os atletas nos vários pontos de passagem. Os autocarros vão de abastecimento em abastecimento. Isto permite-nos também desfrutar da paisagem e conhecer a região, mesmo que apenas de passagem.
E assim passámos o dia de 4ª feira. Começámos por conhecer o túnel do Monte Branco, um buraco por debaixo do Monte Branco que nos põe ao fim de 11 Km directamente em Itália, na belíssima cidade de Courmayeur. Não é barato passar no buraco. Um ligeiro de passageiros paga mais de 40€ e um pesado passa dos 300€ com camiões TIR duplos a chegar aos 600€. Safa! Mas mesmo assim deve compensar bastante pois a alternativa é contornar todo o Monte Branco e perder várias horas, litros de gasóleo e portagens de auto-estradas. As medidas de segurança são grandes, obrigam a distâncias mínimas elevadas entre cada carro, os camiões TIR são agrupados em comboios e escoltados à frente e atrás com pace cars dos quais não convem aproximar. A entrada no túnel é controlada de modo a que não seja possível seguir-se muito perto uns dos outros. Os camiões passam por uns scanners que avaliam se alguma parte está demasiado quente e são obrigados a parar em caso positivo. Estas medidas de segurança estão em vigor desde o gigantesco acidente neste túnel que matou quase 40 pessoas. Ao passarmos no buraco acreditamos que todas as medidas de segurança que estão agora em vigor não permitem que torne a ocorrer a tragédia que o memorial do lado francês à entrada do túnel evoca:
No dia 24 de Março de 1999 um camião incendeia-se dentro do túnel e de um lado e do outro forma-se uma coluna de camiões e de automóveis. Os socorros italianos chegam primeiro mas têm de bater em retirada porque o fogo que progride a 4 m/s e asfixiantes - monóxido de carbono - causarão a morte dos viajantes que se tinham refugiado nos abrigos de segurança. No total morreram 39 pessoas dentro os quais um bombeiro francês e um socorrista italiano que antes, e na sua motocicleta, havia conseguido salvar 8 pessoas. Mesmo com máscaras, 18 bombeiros tiveram de ser evacuados para o hospital.
O incêndio que durou 53 horas, e destruiu 24 camiões, 9 automóveis, e dois carros dos bombeiros, só permitiu a entrada no túnel três dias depois de ter começado. As temperaturas atingiram os 1 000 C°. O túnel ficou fechado durante três anos e os trabalhos custaram entre 200 e 250 milhões de euros
Mas ponhamos de lado a tragédia. O dia é de vibrar com a prova do Paulo. Em Courmayeur trocámos para outro autocarro que nos iria levar ao Col Petit St Bernard. Um antigo posto fronteiriço a 2188m. Meia dúzia de casas, das quais 2 ou 3 são bares de apoio. Um pequeno teleférico na zona permite que no Inverno esta zona ganhe vida extra com quem procura encostas nevadas para escorregar. Um dos bares é parceiro da organização. Entrámos para esperar um pouco pelo Paulo e tomar umas cervejas e uns cappuccinos, afinal estávamos em Itália.
O Paulo surge pouco tempo depois de forma inesperada. Estávamos a fazer o trilho ao contrário a cruzar-nos com atletas quando de repente lá vem ele. Super bem disposto. Quase 3 da tarde, 8h de prova e 36Km. Este ponto tinha uma hora de fecho ás 16h30 pelo que aqui o Paulo seguia bem.
A paragem não foi grande. O Paulo estava bem e de pouco precisava. Ele iniciou a enorme descida até Bourg Saint Maurice e nós saltámos para dentro do autocarro que nos iria levar também até lá abaixo ao vale a 837m de altitude. Os trilhos, enquanto os conseguimos seguir encosta abaixo pareciam excelentes.
Dezenas e dezenas de atletas desciam, a montanha. Em breve perderíamos o trilho e descemos às curvas até à cidade. Hora de corte aqui 19h, 50 Km. Achei que o Paulo aqui iria ganhar alguma folga extra para juntar aquela 1h30 que trazia sobre a ultima barreira horária mas não. Afinal ia descer ao longo de 14Km. Mas as coisas nestas provas nem sempre correm como prevemos.
E o Paulo acaba por chegar às 17h37 e só saiu às 18h12. Reduzindo assim perigosamente a sua folga para pouco mais de 45 minutos. Ao que nos contou a descida era demasiado técnica, ingreme e conseguiu correr muito pouco. Algum sangue numa das meias era a razão de algumas dores que vinha a sentir. Mas isso não o afetou e lá seguiu com o moral reforçado. Dali para a frente as ligações dos autocarros não iriam permitir continuar a acompanhar a sua prova, pelo menos sem ser extremamente penoso para a Manuela com a perna partida e em cadeira de rodas. Voltámos a casa e iríamos continuar a acompanhar a prova pela net e pelos SMS’s da organização e ver como evoluía a noite para planear o dia seguinte.
Depois de Bourg Saint Maurice vinha uma colossal subida talvez a pior da prova, que o iria levar até aos 2567m. Temi que as coisas fossem correr mal porque as subidas não são o forte dele mas surpreendeu-nos quando passou Fort de La Platte de novo a mais de 1h do tempo de corte. Tinha recuperado de novo algum tempo. Isso iria dar-lhe ànimo para a noite….ou não.
A próxima dificuldade estava às 0h45 em Cormet de Roselend. As coisas pareciam bem encaminhadas e a principal dificuldade da prova parecia de novo ultrapassada. Agora era a descer e plano. Parecia tudo bem. Mas não estava. Várias dificuldades ditaram que o Paulo chegasse aqui já com 2 minutos depois do tempo limite. A organização foi tolerante e o Paulo seguiu viagem mas tinha-se esfumado a hora que tinha conseguido acumular. Ficámos preocupados e fomos dormir um pouco apreensivos. O que se estaria a passar? De novo uma descida e de novo imenso tempo perdido. Vinha aí um novo colo para vencer e numa nova descida. Em La Gite uma nova barreira horária o esperava. 3h da manhã!
E o Paulo foi barrado em La Gite onde chegou às 3h12, 74Km. Estava bem, sentia-se bem, mas estava a fazer uma prova demasiado lenta e não conseguiu cumprir os tempos de passagem máximos. Foi uma enorme deceção, obviamente. E nós ficámos também muito tristes por ele. Mas as regras são conhecidas à partida e quando alinhamos sabemos que essa é uma delas. Há que aceitar com desportivismo e o melhor que podemos fazer é desfrutar do resto e treinar com mais afinco para a próxima.
Enquanto o Paulo descansava da sua prova a minha ia começar. A manhã foi passada a comprar as ultimas tralhas em falta, uma volta na feira, levantar o dorsal, etc.
Fui bastante cedo para o pavilhão. A ideia era levantar o dorsal o mais rápido possível e fugir ás filas. Quase 4000 atletas iriam levantar ou tentar levantar o dorsal nesse dia…
Foi tudo tão rápido que, graças a começarem as verificações um pouco mais cedo, antes das 10h (hora de início) já estava despachado. Tudo pronto. UTMB À VISTA!!!!!
Adorei ler o relato.
ResponderEliminarFico a aguardar pelo resto.
Beijinho
Eugénia
Parabéns Paulo. Desta vez pela c´ronica. Simplesmente magnifica. É quase como se tivemos lá e com vontade de fazer a prova (eheheh mas a vontade de fazer a prova passa depressa. Grandes malucos).
ResponderEliminarUm abraço,
AC
Excelente relato, já enviei mensagem ao Paulo para afincadamente prosseguir com o seu objectivo, ele vai conseguir Abraço e fico à espera da tua Odisseia bem conseguida.
ResponderEliminarGrande crónica (como sempre), a fazer-nos sentir como se lá estivéssemos. Venha daí a parte 2 que estou ansioso por viver um pouco a tua prova.
ResponderEliminarAquele abraço
O aluguer do apartamento era carote?
Como sempre, um excelente relato. Uma inspiração para quando corremos nossos treinos, pensarmos que um dia talvez estejamos lá a viver ao vivo o que acabou de ser relatado.
ResponderEliminarExcelente relato.
ResponderEliminarPena o Paulo Fernandes não ter conseguido chegar a tempo. Fica para a próxima.
Runabraço