quinta-feira, 13 de março de 2014

TransGranCanaria 2014 - Como atravessar uma ilha em 133Km - parte 2

Para ler a parte 1 sigam este link

A subida começa na partida e só irá abrandar dentro de 2 horas. Era essa a minha estimativa para subir os mais de 1200 metros de desnível que nos separavam do 1º pico. Sem pressa sigo à conversa com o Simões. Ele já tinha dito que queria ir devagar. Em breve se começa a queixar que eu ia muito rápido embora não fosse sequer a forçar e caminhasse em muitos sítios onde podia chegar um pouco à frente com uma corridinha. Ainda fomos ali um pouco com a Ester mas tinha combinado ir com ele e sinceramente gosto de ir com companhia à conversa em vez de ir a fuçar num ritmo alto. Para me dar o quê? 1 hora a menos na meta? Bahhh! 
A Ester segue e nós vamos ficando num ritmo mais suave. O vento por vezes forte não era suficientemente frio para me obrigar a vestir o casaco. A minha camisola de compressão de mangas compridas mais a t-shirt estava a revelar-se uma excelente opção. Conforme as cristas e as encostas que íamos fazendo assim estávamos mais ou menos expostos ao vento. Mas era temporário e o corpo aquecia rapidamente de novo nem que fosse preciso forçar um pouco mais a corrida na subida. O Simões apercebe-se que estou com um bom ritmo a subir enquanto ele é mais ágil nas descidas. Combinamos eu subir ao meu ritmo e ele apanhar-me nas descidas onde já estou bem melhor mas até devido à minha lesão no ombro estava um bocado elefante em loja de porcelana.

O primeiro pico, verifico agora que foi passado com 1h55. Até me arrepio com a minha previsão. Segue-se uma grande descida que tinha estimado demorar 1 hora. Não tinha descolado verdadeiramente do Simões na subida até porque nos juntámos novamente após o 1º abastecimento e na descida seguimos mais ou menos a par. Chegamos ao ponto mais baixo com precisamente 3 horas de prova. Tudo a bater certinho como um relógio suiço. 

Após o 2º abastecimento a subida instala-se novamente. Conforme combinado meto o meu ritmo normal mas empenhado a subir e perco o contacto com o Simões. Passamos por sítios seguramente perigosos mas a noite tudo esconde. Dou razão ao Simões. Não faz qualquer sentido esta prova começar às 0 horas. Naquela zona da ilha, aquela altitude junto ao mar a paisagem é deslumbrante. Vê-se Tenerife ali ao lado. Uma perda irreparável. 
O segundo cume é vencido um pouco antes das 5 da manhã. Segue-se uma sucessão de pequenas subidas e descidas em que era difícil avançar com alguma estimativa de tempos. Tudo iria depender muito do terreno. Lembro-me de estimar mais 3 horas até aos 42Km onde iria partir o pessoal dos 80 e onde poderia chegar à hora dessa partida que seria ás 8 da manhã. Mas ainda estou muito longe disso. Sigo calmamente mas empenhado. Aguardo que o Simões se cole a mim mas nunca mais aparece. Estamos perto das 6 da manhã. Começo a ansiar pela chegada do dia. Estou um pouco farto da noite. Apetece desligar o frontal e descansar um pouco a vista. Começamos a chegar a uma vila. Artenara. O abastecimento é numa espécie de mercado coberto. Um pouco pobre para o que ia à espera. Sandochas de queijo e fiambre, fruta, marmelada e bebidas. Bebo um caldo quente salgado. Bem gostava que o Simões aparecesse mas nada. Começo a arrefecer e não me posso demorar mais. Meto umas barras da overstims na mochila e arranco a correr cheio de frio. É a subir forte e agradeço pois ajuda-me a aquecer. Ao fim de 5 minutos já restabeleci a temperatura.
São agora 6h30 e amanhecer tá quieto. Nem vê-lo. Já estou chateado com o raio do dia que não chega. Entretanto uma ténue luz no céu deixa perceber porque não temos mais luz. O céu está totalmente coberto por espessas nuvens baixas. Nada passa. Já tínhamos andado dentro das nuvens mais atrás a lutar contra o nevoeiro, a reduzir a luz do frontal para reduzir o encadeamento. Com o nascer do dia começo também a chegar a uma parte da ilha bem mais húmida e arborizada. O piso passa a lamacento as pedras estão molhadas por vezes com musgo. Começo a temer um pouco com as Salomon Sense Mantra que achava muito escorregadias. Mas estava enganado. Quando bem usadas revelam-se tão escorregadias como quaisquer outras. Vou ganhando confiança sobretudo em descidas com muitas pedras bem escorregadias. Não é só ter bom material. Um bom kit de pés também é importante. 

Já perdi a esperança de reencontrar o Simões. O que lhe terá acontecido? Eu não estava a apertar muito sequer. Poupava-me pois era ainda muito cedo na prova. Seguia satisfeito por estar a fazer uma média na casa dos 10" por Km. Isto a manter-se daria algo na casa das 21h. Sabia que ia quebrar mais à frente, era inevitável. Mas cada Km a 10" aumentava a minha confiança. Os pés, os meus grandes inimigos nas longas distâncias estavam razoavelmente bem, mas era muito cedo para celebrar fosse o que fosse. Aproximamo-nos novamente de uma vila, começo a ver pessoal equipado a ensaiar uns trotes, malta a estacionar, rapidamente percebo que estamos a chegar à partida dos 80 Km. Abastecimento com a partida à vista.
Passava pouco das 7h30. Fico contente por ir passar aqui antes deles partirem. Arranco satisfeito da vida e mando umas bocas à Simões sabendo que ninguém percebe o que estou a dizer: opá se vocês soubessem onde se estão a meter ficavam mas era na cama... e outras parvoíces do género. Sigo a correr e passo mais uns quantos da minha prova. Aqui já vou encontrando alguns tipos a zombificarem. Por volta das 8h passo um que me diz que daqui a 10 minutos os tipos da frente estão a passar por nós. Digo-lhe que não e arranco a correr. E não estavam mesmo. 
Iam precisar de mais de meia hora para começarem a passar por mim. Primeiro um grupo de cavalos, passo certo, todos em equipa, frescos que nem alfaces a galgar a subida. Eu a andar claro. Não é que fossem sequer da minha categoria, uma série de putos prós, mas também já tenho 50Km com 8h30 de prova nas pernas. Mas quando a subida apertou a sério, todo o cobarde faz força e todo o valente se... amocha aí bicho. Meteram a passo e mai nada. E ri-me para dentro. Claro que o passo deles a subir nem eu a correr fazia :)

E enquanto mamava aquela subida com as bengalas a ajudar foram passando por mim os atletas a sério. Chamava-lhes campeones, como outros me chamavam a mim. Muitos agradeciam, outros nem conseguiam respirar quanto mais responder-me.

Tinha agora já mais de 1/3 da prova feito. Ainda não percebia bem como ia conseguir chegar aos 83Km, sensivelmente 2/3 e mesmo aí faltava outro tanto até à meta. Mas era muito cedo para preocupações. O dia estava a começar a clarear a sério mas totalmente nublado. Uma bênção pois estava uma temperatura agradável para correr.

Seguíamos agora ladeando hortas, pequenos aglomerados de casas, escadarias toscas de pedra, muito escorregadias, paisagem quase tropical com imensa humidade. Este lado da ilha nada tem a ver com o Sul árido e seco. Depois de vencermos o cume a seguir ao abastecimento e partida da prova dos 80Km seguia-se uma franca descida, algo perigosa pelo nível de humidade em tudo, pedras, folhas de piteiras esmagadas, sempre a descer até Teror.

Nessa zona ainda consegui trocar umas palavras com uma francesa. íamos mais ou menos no mesmo ritmo, ora passa ela ora passo eu e já farto de ir calado há muitas horas lá fomos conversando um pouco. Com os espanhóis é escusado. Ou sabes aquela musiquinha com que eles cantam o espanhol ou então és ignorado. Não estão para se esforçar mesmo que vejam alguém a tentar falar a sua língua. A maior parte não te responde e finge que nem te percebe.
Depois de Teror regressa a forte inclinação com uma escadaria urbana monte acima, interminável, que depois dá lugar a trilho mas sempre a subir. Bofes de fora, aguenta que é serviço. Ao vira de uma curva um tipo sentado a passar um mau bocado. Era o Luis Trindade, e a minha prova estava a pontos de mudar. Ficámos ali um pouco à conversa. Não sabia bem o que se estava a passar. Estava exausto e sentia-se sem forças. Após alguns minutos retomámos o percurso mas ele estava muito afetado. Fosse do que fosse não estava a conseguir entrar no ritmo. Disse-lhe logo que esquecesse a cena de desistir. Não viemos até aquela ilha para desistir. Combinámos ir até ao abastecimento seguinte onde ele depois de descansar um pouco reavaliaria o que queria fazer porque lhe estava a ser penoso prosseguir naquelas condições. Faltariam talvez 3 ou 4Km para o abastecimento a meio da subida. Não foi fácil chegarmos ao abastecimento mas lá acabámos por conseguir. Não havia grandes recursos ou apoios por ali. Um abastecimento relativamente simples. Ele descansou um pouco. O sol começava  a aparecer por entre as nuvens. O dia ficou mais bonito e mais quente e o Trindade decidiu que o melhor era tentarmos chegar ao abastecimento dos 83, mais 20Km. Sentia-se um pouco mais forte. Ainda havíamos de subir a bom subir até às antenas, antes de atacar a grande descida até Tejeda a "apenas" 11Km de subida até Garañon, muda de roupa e hipótese para renascer das cinzas.

E assim fizemos. Depois da grande descida e do reabastecimento de Tejeda onde a vila estava em festa e havia imensa animação e cantoria atacámos a subida para Garañon. Estávamos a caminho das 13h e as dificuldades para o Luis iriam voltar na grande subida. A juntar à dureza da subida, o calor. 

Em plena subida o sol fustigava o corpo. Eu dissertava acerca da gaiola gigante no cima da montanha ser a casa de um mega canário que tomava conta da ilha. O Trindade dizia que eu era marado e que via cenas esquisitas. Na realidade tratava-se de Roque Nublo e mal sabíamos que íamos lá picar o ponto.

Com dificuldade lá conseguimos vencer a subida e Garañon que parecia fugir de nós à medida que nos aproximávamos, lá foi tomado pelas 16h. Esta era a hora estimada para partir de Garañon e não para chegar. Mas as prioridades tinham sido alteradas. Por mais iverosímil  que me parecesse no princípio o objectivo seria agora chegarmos juntos ao final.


A gaiola do canário gigante vista de perto. Roque Nublo prós amigos.



Ponha aqui o seu pezinho. O tapete de controlo mais pequeno do mundo em Roque Nublo.
Fabulosa paisagem com Tenerife ali mesmo ao lado
No Garañon gastámos todo o tempo do mundo. O importante era rejuvenescer. O Trindade crava a organização para tomar um duche a contra várias dificuldades eles lá concedem a benesse. Estávamos num parque de campismo e balneários não faltavam. Grassava um pouco a confusão neste abastecimento e as coisas estavam um pouco entregues à boa vontade de toda a gente. Eu fui trocar de roupa e de ténis mas os pés estavam tão bem que cheguei a considerar manter os Sense Mantra até final. Imagine-se. Mas tomei a melhor decisão ao mudar para os Asics, mal sabia eu a pedra que ainda aí vinha. De resto não troquei mais nada. Estava completamente seco, para quê trocar para outra roupa seca? Alimentámo-nos bem, comi massa para além do razoável e seguimos a nossa vida. Esperava-nos, supostamente a parte mais fácil. E de facto era. Resumidamente uma curta mas grossa subida até ao observatório de Pico de las Nieves o ponto mais alto da prova e da ilha com 1938m, para derreter a pratada de massa. Depois uma interminável descida de 11km com declives por vezes muito acentuados e com calçada tosca de basalto feita em cristas de rocha montanha abaixo, um local com vistas deslumbrantes mas que não dava para apreciar devido ao perigo constante do terreno. Descíamos de pedra em pedra. Quando termina aquele massacre passamos para outro, um pouco menos acentuado mas na onda do anterior. Calçada tosca de pedras, irregular. Um novo massacre que nos fazia esquecer que íamos a descer.
O calhau acaba praticamente no abastecimento de Tunte, 94,5Km, 19.5h de prova. O problema é que aqui já o meu GPS marcava 100Km. As placas que de 5 em 5Km assinalavam a distância para a meta há muito que já não faziam sentido e baralhavam todas as contas dos abastecimentos e tempos. Em Tunte aproveitei para avisar a Dora do estado da prova dado que em Garañon não havia rede. Quase com 20h pus também o relógio a carregar, não que se tivesse queixado mas evitava parar mais à frente. A próxima dificuldade que nos esperava era a perigosa descida para Arteara que já nos tinham avisado. Uma descida muito ingreme em terra seca e pedra, altamente escorregadia. Desde que passámos o Pico de las Nieves que estávamos cada vez mais em paisagem árida e seca e esta descida para Arteara era um bom exemplo disso. Para além de todas as dificuldades acresciam as dores nos pés. o cansaço, a ideia que um salto mal calculado, uma pedra que cede, uma escorregadela a mais e era o fim da prova aos 115Km...nahhh.... calma com isso amigo. 
Depois de Arteara vieram talvez os 11Km mais penosos da prova. Em plena noite e já depois de fazermos as 2 subidas anunciadas no perfil. entramos num vale do qual não vislumbramos a saída e o que imaginámos ser um suave estradão a descer para a meta era afinal um trilho que subia e descia, subia e descia, numa sequência infindável e repetitiva. As sombras pregavam partidas ao cérebro que via o fim a cada curva no horizonte escuro

Quando por fim abandonamos aquele vale ingrato e escuro qual labirinto seco de calhaus estávamos na Machacadora, o ultimo abastecimento. Oficialmente no Km 120, realmente já com 127Km. O ânimo era escasso, faltávamos apenas descer até ao farol de Maspalomas, unica dificuldade o facto de irmos por dentro de um enorme canal de águas pluviais que desagua na praia, ainda assim grosseiramente revestido com grandes lajes de pedra e cimento, umas partes melhor do que outras.

Estávamos muito perto de acabar a aventura. As 24h para terminar já tinham sido uma miragem há muito esquecida embora as 24h para fazer 125km tenham sido uma realidade como documenta o GPS. Só se esqueceram foi de dizer que afinal eram 133Km

Um pouco antes do farol saímos do canal, contornamos o farol pela praia, um pouco de areia para celebrar. Aumento o ritmo e obrigo o Trindade que queria cortar a meta primeiro a um ultimo esforço. O Luis Canhão vem dar-me a bandeira de Portugal. A nossa comitiva faz grande festa à nossa chegada. 



Está concluída a travessia da Gran Canária. Pior ou melhor o objectivo foi atingido. De manhã vi jeitos da coisa não ter um desfecho tão positivo, pelo menos para o Luis Trindade. Mas felizmente com calma e perseverança e muita energia positiva lá chegámos ao final. Teria sido uma prova diferente se não o tivesse encontrado, se melhor ou pior pouco importa, mas foi seguramente muito mais bem passada, lá isso foi. Da próxima vez já sabes, se não queres levar comigo meia ultra já sabes que tens de dar à perna para não te apanhar, principalmente em estado walking dead montanha acima. 

Dali foi só meter-me num táxi com a família e rumar ao banho e refeição no apartamento. Uma noite de repouso e um dia na piscina haviam de ajudar a uma rápida recuperação do empeno que não deixou grandes marcas, nem exterior nem interiormente.

Creio que toda a gente gostou desta viagem. Quem foi pelo sol e banhocas teve as duas coisas. Quem foi para correr também teve a sua conta. Na TransGranCanaria o Turtles fez uma boa prova com 20h51 e a Ester nas 23h03. Eu e o Trindade nas 25h e 15m que acabou por ser um resultado simpático tendo em conta todas as contrariedades que tivemos de ultrapassar, ficámos a meio da tabela, ainda assim. Quem diria.
Na distância Maratona a Paula Penedo a fazer um excelente tempo com 5h27, o Luis Canhão com 7h27 e o Manuel António com 8h53. Todos uns campeones!

Recomendo esta epopeia a quem goste de testar os seus limites e se calhar ultrapassá-los. O piso é algo demolidor, algumas subidas dolorosas, não muitas ainda assim. Abastecimentos algo limitados mas ninguém passa fome ou irá notar a falta de alguma coisa. Aqui e ali poucas fitas, ainda tive de consultar o track no relógio um par de vezes. Esperava um pouco mais tendo em conta que era uma prova do circuito North Face mas ainda assim reconheço que fui eu que pus a fasquia demasiado alta. Os 7 Kms a mais é algo que não se compreende. Também ficam por explicar os 8500 D+ quando tinha na melhor das hipóteses 7500 D+. O almoço convívio no dia a seguir à prova recomenda-se e bem. Excelente comida e bebida à descrição. Meu deus, que festim, tirei a barriga de misérias por 8€!!!

O clima da ilha nesta altura do ano com alguma sorte é uma maravilha. Temperatura amena, e com sol é o nosso verão. É perfeitamente possível fazer praia com um dia de sol.

Ao mentor da aventura, Luis Trindade, obrigado pela aventura. Venha outra! Aos companheiros de viagem obrigado pelos bons dias de férias que passámos. Até à próxima!

4 comentários:

  1. Mais uma grande aventura cheia de sucesso. Parabéns!!!

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  2. Muitos parabéns por mais esta aventura concretizada, e tb por estes dois "episódios" em que tão bem relatas a tua prova e nos "levas" contigo.
    Uma noite bem dormida e um dia de piscina e já tás pronto para outra??? Que grande máquina!!!
    Abraço

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  3. Muitos parabéns e obrigado pela partilha desta aventura. Ficamos com aquela vontade de ir até à ilha :P
    Abraço

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  4. Boa Paulo, Mais um relato ao teu estilo. Obrigado pela partilha.

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