quarta-feira, 16 de outubro de 2019

À conquista do Toubkal, o topo do Norte de África - Dia 2, a caravana


Aos poucos o dia vai nascendo. A pouca luz da aurora entra pelo quarto com um ruído abafado de chuva... Espera lá! Chuva? Vou dando as ultimas voltas na cama, meio sonolento a pensar nas alterações que isso iria implicar na mochila que tinha preparado, no que iria levar vestido, etc.


Quando a Dora acorda, falamos sobre a tal chuva. Não estava de todo previsto, a não ser o Hicham que tinha dito que poderíamos apanhar chuva. E como isto é montanha e o homem é guia, um gajo fica a pensar que este pessoal deve perceber mais da coisa do que os modelos matemáticos dos sites do tempo...  

(não se esqueçam que podem clicar nas fotos para verem em écran inteiro)

Mas há alturas em que a matemática bate a intuição e a experiência, e foi-se a ver, a chuva era apenas a ribeira lá em baixo no vale. O som da água ao longe ecoava e, no silêncio da madrugada parecia uma chuvinha persistente. O dia estava, como previsto, espetacular e prometia ser relativamente tranquilo. Em termos físicos não haveria grande exigência: uma caminhada de 10 Km ia levar-nos dos 1600 m de altitude de Imlil aos 3100 m do refúgio do Toubkal, a base de ataque ao cume do Toubkal. Iríamos dormir em tendas, num acampamento perto do refúgio e não no próprio refúgio...

Fiquei um pouco apreensivo porque (estupidamente) não tinha levado um saco cama decente. O PDF do material dizia saco cama para zero graus, mas nunca pensei que dormíssemos em tendas... Felizmente o tempo estava excelente com temperaturas fora do comum para a época. Aos 3100 m estariam 15 graus durante o dia e 7 ou menos à noite. Vamos ver como corre, mas parece-me que o espertalhão vai pagar a fatura...

O grupo reúne-se para um bom pequeno almoço, que até papas de aveia tinha. E que boa fonte de energia é a aveia. Com muesli à mistura ficaram um luxo.

Sem perder tempo iniciaram-se os preparativos para a nossa caravana. Resumidamente, as malas maiores ficariam por ali algures, guardadas. Para a subida ao Toubkal iríamos levar apenas o necessário. Roupas quentes, sacos cama, higiene pessoal etc. As mulas dariam uma ajuda para nos aligeirar a carga até ao refúgio levando os sacos cama e outro material que não coubesse nas mochilas que levávamos. Isto, para além de 18 tendas, 18 colchões, 2 tendas grandes (cozinha e sala de refeições) 1 tenda casa de banho (uma espécie de armário com um buraco cavado no chão...) e claro toda a comida e logística para preparar 4 refeições para 27 pessoas....

Duas coisas que impressionam: a capacidade e organização dos marroquinos para esta mini expedição, e claro, a capacidade destes animais fantásticos sem os quais nada disto era possível. As mulas são um animal impressionante. Não há trilho ou terreno impossível para elas, nem carga que não transportem. São o melhor amigo dos berberes da montanha.

A azáfama é enorme por ali. Malas para um lado, sacos de material, mulas a chegar, os marroquinos a carregarem as mulas. Uma coreografia que faz parte do modo de vida daquela gente, habituada a levar os amantes da montanha nestas expedições.

Rapidamente saímos dali, até porque o espaço é limitado e só estamos a empatar. Mochilas às costas que a nossa caminhada está à espera.



Atravessamos a aldeia de Amroud e entroncamos no trilho que sobe ao Toubkal. O sol está forte, o céu sem uma nuvem. Esbarramos no controlo policial mal saímos da aldeia, antes mesmo de entrar no parque nacional do Toubkal. Desde o grave incidente do ano passado com as turistas nórdicas, foram implementadas uma série de medidas de segurança adicionais. O guia não estava ao corrente que era necessário a lista de todos os passaportes.... telefonemas, conversas e depois de alguma espera e indicação de todos os números, lá conseguimos seguir viagem.


A subida por um trilho sem qualquer outra dificuldade que não fosse a inclinação, prosseguia a bom ritmo. Várias "áreas de serviço" pelo caminho permitem descansar um pouco, tomar uma bebida fresca, comer qualquer coisa. Qualquer tasca tem capacidade de satisfazer todas as exigências dos clientes, desde uma coca cola a um fausto almoço de tagines. E não podemos deixar de nos surpreender com o engenho marroquino para trazer a água gelada da ribeira até aos seus estaminés, onde cumpre na perfeição o papel de refrigeração gratuita e sem qualquer pegada ecológica.


A hora de almoço aproxima-se. O trilho sobe em direcção ao refúgio sempre ao lado da ribeira que desce da montanha. Já sabíamos que ia ser um piquenique, só não sabíamos onde. Às tantas o Hicham sai do trilho e vai falar com um grupo de muleteiros um pouco mais abaixo junto à ribeira. Manda-nos descer. E rapidamente se monta um local para almoçarmos. Uma tolha enorme ladeada de colchões e todos se sentam. O chá de menta surge para começar, como sempre.

Depois começam a chegar travessas de legumes, atum, sardinhas, pão. Tudo bem temperado e saboroso. Num instante se alimentam 18 pessoas. Simples, prático e ninguém fica com fome. A eficácia marroquina a dar cartas.

Resta-nos agora 1h30 de trilho até chegarmos ao refúgio, que se faz sem grandes novidades. Subir, subir, o grupo avança com calma. A Dora ainda apanhou uma pequena boleia para se juntar ao grupo, mas depois seguiu na companhia de todos.




O refugio avista-se enfim, no final daquela vale glaciar gigantesco. O acesso ao cume do Toubkal fica para a esquerda. Quando nos aproximamos vemos já os nossos muleteiros com algumas tendas montadas, um pouco mais abaixo do refugio e na margem esquerda do ribeiro que vem do refugio. A montagem do acampamento prossegue a bom ritmo. As tendas principais, das refeições e cozinha já estão de pé e estavam a montar as tendas para dormirmos.



Depois de nos instalarmos nas tendas e após o omnipresente chá, na tenda das refeições, fizemos uma pequena incursão ao refugio. Sobretudo para comprar água para o dia seguinte. mas também para descobrir um ambiente radicalmente diferente do que imaginávamos.



O refugio é apenas uma área de serviço gigante. A rotina por ali passa por receber as centenas de pessoas que diariamente saem de Imlil em direcção ao cume do Toubkal. A pernoita no refugio é por algumas horas, um jantar numa cantina cheia até à porta, uma barulheira incrível. Os quartos para 20 ou 30 pessoas, tudo demasiado impessoal, barulhento e confuso. Uma fobia! Compreensível, claro, não há nada para fazer ali a não ser preparar a ascensão no dia a seguir e descer já sem parar no refugio.

Regressámos ao nosso acampamento personalizado, com uma noção muito melhor do que nos era oferecido nesta versão muito mais genuína de ascensão ao Toubkal.

Reunimo-nos na tenda grande para jantar. Lá fora a noite chega de mansinho. Improvisam-se uns candeeiros com umas velas numas pedras. O frontal do Rui ajuda a iluminar a "mesa". O jantar é servido, grandes travessas de legumes, massa, carne, sopa. Depois fica-se à conversa. O Hicham explica vários aspetos da cultura e história de Marrocos, partilhamos as realidades dos nossos países, um ambiente que nada tem a ver com a gritaria e azáfama do refugio.


O pequeno almoço fica marcado para as 5h, era preciso acordar cedo para subir ao cume (3h), descer, comer um almoço leve e descer para Imlil. Ia ser um looooongo dia.

A noite até estava calma, sem vento, o que permitia suportar a temperatura que se fazia sentir. O céu era tão fabuloso que até com um telemóvel se sacavam umas fotos engraçadas da via láctea, como esta.

Como já era de esperar, estava na hora de pagar a fatura de ter trazido um saco cama nada apropriado, de modo que a noite não correu nada bem. Mesmo com toda a roupa vestida, o frio entranhava-se lentamente no corpo. Foi uma noite para esquecer em que acordava gelado, mudava de posição, não conseguia adormecer, etc., uma verdadeira desgraça.  Felizmente dava para fazer conchinha com a Dora e sempre era mais suportável o frio que se fazia sentir. Garanto-vos que aprendi a lição.

E de uma maneira ou de outra, mais arrepio, menos arrepio a noite lá acabou por passar. O dia de conquistar o ponto mais alto da África do Norte, o motivo de estarmos ali, o nosso acampamento, a caravana e toda a preparação, aguardava-nos 1000 m de altitude mais acima.

Vamos a ele! É hoje!

Continuar para o dia 3

Créditos das fotos: Paulo Pires, Pedro Almeida e José Santos

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