sábado, 26 de outubro de 2019

À conquista do Toubkal, o topo do Norte de África - Dia 3 , cume!


5h10m....bzzzzzzzz...bzzzzzzzz... o relógio vibra no pulso e finalmente liberta-me de uma noite para esquecer. Para além do frio, o vento por vezes forte, ajudava à festa que me manteve acordado grande parte da noite. Mas agora pouco importava, era hora de iniciar um dia que prometia ser memorável.

Com o frio que se fazia sentir dentro da tenda e o vento a soprar cá fora, pensava que ia gelar quando saísse da tenda. Estranhamente, depois de sair até nem achei que estivesse muito frio. Pouca experiência de acampar com baixas temperaturas. Pelos vistos a condensação dentro da tenda contribuía para manter a temperatura mais baixa. Mais valia ter dormido de porta aberta?

Saio para fora da tenda, está noite cerrada. Sopra a tal brisa surpreendentemente, não muito fria, diria até agradável face ao frio que rapei dentro daquela tenda a noite toda. Olho na direção do refúgio e do lado esquerdo, no trilho para o cume do Toubkal, uma fila gigantesca de luzinhas arrasta-se montanha acima. Mais acima, mais um grupo de luzes. Já imensa gente iniciou a subida em busca de ver nascer o sol no cume do Toubkal.

Mas não era esse o nosso objetivo. Com o pequeno almoço marcado para as 5h30 e saída às 6h não seria possível ver o sol nascer no cimo do Toubkal. Importante mesmo nesta incursão era que todos chegássemos ao ponto mais alto da África do Norte.

Depois de tudo arrumado e tendas vazias, para serem desmontadas enquanto subíamos ao Toubkal, juntamo-nos na tenda para o pequeno almoço habitual com as papas de aveia, o muesli, e tudo o resto (pão, leite, café, queijo, compotas, etc.)

Cá fora o vento soprava e sabíamos que íamos subir e que, mesmo com o esforço a temperatura iria descer. O ritmo de subida seria naturalmente lento e o vento iria fazer o resto. Estamos a falar de subir 1000m em 3 Km ou seja mais de 300m por Km, ou seja mais de 30% de inclinação média.

Para quem está habituado a estas vidas pode não ser nada de especial, mas para pessoas comuns isto é muito duro. Principalmente se o ritmo for elevado. Eu estava preocupado com a Dora que era do grupo quem teria mais dificuldade em gerir a subida. A Margarida subia folgada. A malta jovem tem uma capacidade e disponibilidade que lhes permite, mesmo sem grande forma física, encarar estes desafios de forma tranquila.

Para evitar que ficasse para trás, tentava que a Dora fosse na frente. Por fim o Hicham lá percebeu que ela tinha de ir à frente a marcar o ritmo e a partir daí o problema resolveu-se. Ainda teve de repreender um ou dois tipos que insistiam em passar para a frente, mas lá respeitaram e perceberam a lógica. Aquilo não era um prova e o objectivo era todos conseguirmos chegar ao cume, e não mostrar as nossas capacidades fantásticas de ascensão.

A progressão era lenta. A subida consiste em vários tipos de terreno: rocha fruto de derrocadas,  piso com muita inclinação e altamente derrapante e alguns trilhos inclinados mas ainda assim geríveis. A dificuldade era acrescida devido à secura do terreno. Tudo o que escorregava, escorregava a dobrar devido à terra estar totalmente seca.

Ao longo da subida vamos sempre vendo grupos mais à frente. Quem vê bem ao longe consegue ver grupos nas cristas da montanha a altitudes que não imaginamos como vamos atingir sequer... quando se vai cansado e se pensa "porra, ainda vou ter de ir até ali...?"

Mesmo com a Dora a definir um ritmo de subida que nos mantém a todos unidos nesta escalada (e não vaidosamente armados em carapaus de corrida) lá íamos passando alguns grupos que lidavam com dificuldades maiores.

A subida é dura mas diria que é acessível a qualquer pessoa que queira conquistar aquele cume. É tudo uma questão de força de vontade, e tempo para quem tenha mais dificuldade.

Quando nos aproximamos dos 4000m, o vale por onde subimos está quase a terminar e começamos a ficar expostos. O vento sopra cada vez com mais força. O sol já nasceu há algum tempo, mas não consegue entrar naquele vale. Só nos resta subir para a crista ao encontro dele.

Quando finalmente atingimos uma crista já com o sol a aquecer-nos, o vento estraga tudo, soprando de forma desmesurada e destruindo qualquer réstia de calor que o sol tentasse oferecer.




Paramos por um pouco numa zona em que era possível estar abrigado do vento e aquecer um pouco, mas estava já demasiada gente por ali, por isso não ficamos muito tempo. Faltam subir menos de 100 m positivos já. Seguimos numa crista exposta. O vento é impiedoso e entranha-se em qualquer nesga. Já há muito que vesti tudo o que levava. Com o vento as luvas já gelaram e mantêm-me os dedos gelados, como se fosse essa a sua função. O Zé diz-me que o melhor é tirar as luvas e percebo que de facto as mãos cá fora estão igualmente geladas, mas mais facilmente disponíveis para aquecer.em qualquer bolso ou parte do corpo mais quente...

O cume tarda em aparecer. Voltamos a ficar à sombra, o sol está demasiado baixo ainda, mas o vento não dá tréguas.

Por fim estamos na ultima subida, uma pequena reta, já se vê a estrutura de ferro que tantas e tantas vezes vi em fotografias. Sigo ao lado da Dora e não posso deixar de sentir uma enorme emoção quando chegamos. Felizmente com tanto vento e roupa, mal nos reconhecíamos uns aos outros, quanto mais perceber as emoções de cada um. 4167 m!

Fiquei obviamente super feliz por toda a família Pires ter chegado ao cume. A bem da tranquilidade pois na véspera estava relativamente apreensivo com a subida ao cume e a preparação da família. Mas agora tudo estava terminado e era hora de desfrutar do cume.

Não era fácil devido ao vento e ao frio. O céu estava limpo, o sol brilhava ainda quase no horizonte, mas o vento e o frio não nos deixavam desfrutar totalmente daquele momento único. Ainda assim, mais ou menos entrapados, todos festejávamos o feito de conquistar aqueles 4167m de altitude.


A paisagem era simplesmente brutal, montanhas e montanhas a perder de vista. Uma visibilidade a muitas dezenas de Kms. Fotos e mais fotos. A pouco e pouco o vento vai-nos gelando e convencendo a descer, até que por fim lá cedemos à sua vontade.


Está na hora de encarar a descida, e se a subir a coisa era escorregadia devido à inclinação, estão a imaginar a descida com cascalho solto? Para quem tem pouca experiência ou dificuldade com este piso, foi mais um desafio. Agora não eram os pulmões a limitação, era o equilíbrio, a escorregadela constante, o bate cú, uma festa!

Com mais ou menos cuidado, dependendo das dificuldades de cada um, lá fomos gerindo a descida, quase tão lenta como a subida. Ao longo da descida começamos a ficar mais resguardados do vento, a temperatura vai subindo, o sol forte no céu sem uma única nuvem lá ajuda a retirar as várias camadas que se vestiram na subida. O refúgio avista-se cedo mas devido à dificuldade do terreno não seria tão rápido chegar lá abaixo como poderia parecer.


O refúgio do Toubkal visto da descida

Tranquilamente todos chegámos ao final, regressámos ao nosso acampamento onde nos aguardava um último almoço. Distribuímos de novo o material entre o que as mulas e cada um de nós iria carregar, agradecemos aos homens que tornaram possível aquela aventura (os marroquinos com as suas mulas e sobretudo ao cozinheiro) e ala que se faz tarde.

A imagem do nosso acampamento incrustado na montanha é algo que ficará para sempre gravado na memória de todos.

O nosso acampamento base a 3100 m. Para cima é a subida aos 4167 m
Agora era sempre a descer até Imlil. Dificuldade mínima, em que apenas era preciso cumprir 10 Km. O que era isso para uns vitoriosos conquistadores de cumes?

Depois de um compasso de espera, enquanto os muleteiros chegavam com todas as malas (as que levámos para cima e as que tinham ficado em Imlil) seguimos no transfer que nos haveria de levar para uma nova aventura prestes a começar em Oukaimeden, o fantástico UTAT 2019.


Eu não estava à espera duma aventura tão genuína. Adorei cada momento desta experiência que nos foi proporcionada (só me faltou um saco cama decente). Mas tudo correu de forma perfeita. Sinceramente não esperava ser tão surpreendido pela simplicidade e humildade desta gente e destes dias fantásticos que passámos. Enchi verdadeiramente a alma!

Resta-me agradecer a todos os que acreditaram nesta pequena grande aventura pré-UTAT. Obrigado pela vossa companhia. Sem vocês não teria sido possível esta mini-expedição fantástica, à nossa escala de tipos da cidade que vão ali ao lado viver uma cena completamente fora do baralho. Obrigado pelo vosso espírito de encaixe, pela vossa predisposição para estas vivências. Só fica a faltar marcarmos a próxima.

Até lá! Inch Alla!

Yala!

Créditos das fotos: Bertrand Gauduchon

8 comentários:

  1. Eu não sofri tanto com o frio, mas realmente aquele vento não deixou apreciar o cume a 100%.

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  2. Bendita a hora que resolvi avançar para esta experiência inesquecível. Penso,até, que fui bafejado por uma "conjugação astral" rara, com a meteorologia, com todas as aventuras e peripécias vividas, com a janela de tréguas dadas por um joelho amigo mas, sobretudo, pela possibilidade de partilhá-la com um grupo de pessoas fantásticas. Também eu adorei cada pedaço ali passado... Um abraço a todos e até à próxima!

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    1. Obrigado Rui. Foi um prazer a vossa companhia. O pessoal dos Açores é um espetáculo. Temos de combinar uma volta por essa ilha. Recupera lá para tratarmos disso

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  3. Se a vista é tão bonita como nas fotos... a vossa aventura foi muito bem compensada.
    Parabéns a todos pela conquista, especialmente à Dora que nunca foi fã de subidas e descidas íngremes!!!
    E parabéns ao narrador. Mais uma vez uma descrição perfeita!!!

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    1. As fotos estão fantásticas mas é impossível qualquer foto ali fazer justiça à paisagem. Devido à escala e à dimensão daquelas montanhas, não há hipótese. É preciso ir ali ver o que são montanhas, que é coisa que não existe em Portugal.
      Às vezes somos surpreendidos com aqueles velhotes que finalmente vêm o mar pela primeira vez na vida.... e ficam embasbacados porque nem na televisão nem em fotos tinham percebido o que era o mar. Pois em Portugal, se calhar 99% das pessoas nunca viram uma montanha a sério. Por isso ide lá ficar embasbacados!

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  4. Paulo, obrigado pela partilha.
    A tua descrição só veio ajudar a reforçar a ideia que me ia arrepender de não ir 😢

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    1. É só não faltares à próxima para não te arrependeres novamente :)

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