domingo, 4 de setembro de 2016

Haute Route - Dia 5 - St Niklaus – Zermatt via Europaweg




St. Niklaus fica no mesmo vale que Zermatt e em caso de necessidade esse seria o percurso a fazer para o último dia. Vale abaixo até Zermatt, um trilho tranquilo sempre junto ao rio e à estrada que liga as duas localidades. 20 Km de tranquilidade. Obviamente que isso não era forma aceitável de terminar esta aventura. Para o ultimo dia o cardápio só tinha um prato. Europaweg!


Para verem o percurso bem como todas as fotos do dia georeferenciadas, explorem a aventura no Garmin Adventures clicando no símbolo (abre uma nova janela e podem continuar a ler)

E o que é Europaweg (trilho Europa em alemão) ? É simples. Em vez de irmos tranquilamente pelo vale, subimos 1600 m D+ e vamos pela encosta esquerda do vale, sempre a 2500m de altitude, até que perto de Zermatt descemos e entramos na cidade. Para além da brutal subida inicial, da qual nos esquecemos quando chegamos lá acima, fica apenas a faltar percorrer todo o trilho até Zermatt. E que trilho senhores, que trilho….

Na véspera ao jantar a nossa compatriota fazia de interprete para a dona do Hotel. Europaweg?!? A cara séria da senhora fazia antever dificuldades. Depois de traduzido dava: vocês não conseguem fazer Europaweg num dia. Conseguimos sim. Não conseguem. Elas lá iam insistindo que não, mas depois relembrámo-las que éramos loucos. Os loucos conseguem. Afinal eram só 40 e tal Kms, o que poderia correr mal ?

Já tinha lido muita coisa sobre Europaweg. Sabia que o trilho era de progressão lenta e com inúmeras zonas algo complicadas de passar. Basicamente Europaweg era um trilho onde não era suposto haver um trilho. Um trilho inventado e roubado à montanha, sempre à beira do precipício, sempre com uma brutal vista do vale cá em baixo, 1600 m mais abaixo. O problema é que os invernos e os degelos vão mostrando a sua força e na luta homem-natureza já sabemos quem é o mais forte. O trilho, ou o que resta dele nalgumas partes, necessita de intervenções e reparações constantes, sob pena de ficar completamente intransitável.

Mas antes de Europaweg era preciso chegar lá acima, 1600 m acima do nosso hotel. Só aí iria começar a festa. Seguíamos todos em grupo. A subida ia ser dura e sendo o ultimo dia acho que ninguém estava propriamente com muita energia para atacar a subida de outro modo que não fosse em alegre convívio. Pelo menos enquanto a inclinação permitiu o convívio. Rapidamente as coisas empinaram, entrámos na floresta quase vertical que nos levou ao topo. Inclinações de 45 a 50%, por vezes. Muito calor que só as zonas com mais árvores acalmavam. Os troços descobertos permitiam já uma vista incrível de St. Niklaus e de todo o vale.
3h30 depois e a subida estava praticamente vencida. 11 Km de grande dureza em escalada contínua. Uma placa mostra o tempo para Zermatt: 11 horas… Não admira que a dona do hotel deitasse as mãos á cabeça quando soube que íamos fazer a viagem num único dia. Pois se eram 11 da manhã e ainda faltavam outras 11h horas. 
Claro que aqueles tempos são para caminheiros e nós não somos caminheiros… ou somos? Se o trilho permitir não somos, mas já por várias vezes nesta viagem tinha havido longos troços em que o ritmo não havia de variar muito. Vamos ver o que nos reserva Europaweg.

Desde já algo me estava a chatear: água. Não tinha encontrado água na subida, coisa quase impossível mas que estava a acontecer. A minha garrafinha de meio litro estava já a ser racionada. O sol estava muito forte e embora não houvesse propriamente calor aos 2600 m o dia ia ser passado quase totalmente ao sol.

De repente o pequeno trilho que nos levou até ao cume começa a ser substituído por calhaus, maiores, mais pequenos, mais soltos, mais basculantes. 

O trilho, ou melhor, o percurso de calhaus começa a aproximar-se da beira da montanha e aí estávamos nós perante Europaweg. 

Não, não é possível correr para já no Europaweg. Tentar que as pedras que escolhemos não desabem do seu equilíbrio periclitante já é uma tarefa a tempo inteiro...

As paisagens são como podem ver de cortar a respiração. A progressão é lenta e extremamente delicada. Muito poucas zonas oferecem um trilho para correr sequer. Atenção 100% focada no percurso. Em muitas zonas não se dá um passo sem mentalmente ter já pré-definido alguns pontos de apoio alternativos. É que o problema é que em muitos locais o degelo do inverno levou a montanha encosta abaixo...a montanha e o trilho. Só ficou uma zona em que vamos mesmo ter de passar porque não há outra opção.
Uma das inúmeras passagens muito complicadas
O perigo deste trilho era recompensado quando olhávamos para o outro lado do vale. A vista era deslumbrante. Por vezes não convinha mesmo nada olhar para baixo. Eram 1600m quase a pique.

Là em baixo o vale para Zermatt e a montanha do outro lado

O trilho aqui já era tão exíguo mas quando desaparece a corda é mau sinal
Para além de pedras, trilhos destruídos, pontes arrasadas e outras que não tínhamos a certeza se não iriam ceder naquele preciso momento (afinal ali não faltavam coisas que tinham já cedido) ainda ia com uma sede brutal e a racionar meia garrafa de água. Lá negociava comigo próprio o próximo gole, ali, não, um pouco mais à frente e tentava adiar a coisa. Muitos dos desabamentos do trilho deviam-se precisamente a cascatas. Mas a água corria debaixo das pedras e não estava acessível. Talvez descendo um pouco ali, ou escalando acolá chegasse à água, mas o perigo de tal tentativa fazia parecer a sede uma sensação fantástica. Num fio de água mais acessível que escorria por uma pedra ainda estive 5 minutos a tentar encher a garrafa, Acabei por seguir, nem um dedo de água tinha conseguido encher. 
Zermatt ainda muito longe não se vê no final do vale
Finalmente água. Ums cascata meio destruída mas a água circula, pelo menos parcialmente, à vista. Sento-me e banqueteio-me até mais não com aquela água gelada e pura. Que delícia. Devo ter bebido logo ali 1 litro. Era um local perfeito para almoçar, descansar um pouco e desfrutar da vista. O reconfortante som da água a escorrer montanha abaixo quebra o silêncio total que se faz sentir na zona.

A pouco e pouco o trilho vai dando tréguas. A espaços deixa-se correr. Passámos pontes suspensas, pontes de madeira, mares de pedras, perigosas curvas em que o trilho desaparecia e dava lugar a uma ribanceira a pique e finalmente chegámos ao Europahut, o abrigo a meio caminho. Não é preciso ser bruxo para adivinhar que todo aquele abrigo foi transportado para ali com um helicóptero e montado no local.
Europa hut. Reparem no tipo a apanhar sol na varanda. LoL
Diria que estávamos sensivelmente a meio do dia. Seguia com o Luis Matos nesta zona. De repente avistamos a brutal ponte suspensa... que visão. Coloquei as duas fotos para terem uma noção da dimensão da coisa, na 1ª, e para de facto verem a ponte na 2ª. Cliquem nas fotos para ampliar


Uma arrojada obra de engenharia mas que infelizmente, tal como muita coisa neste trilho, não está operacional. O trilho aqui está definitivamente cortado e a passagem na ponte não é permitida. Uma enorme desilusão, mas já desde 2012 que assim é. Foi preciso descer 600m até perto dos 1600m e quando aquele imenso desfiladeiro quase que fecha lá em baixo, atravessar o rio que por ali desce e, obviamente, votlar a subir 600m até perto do local do outro lado da ponte e retornar ao trilho. Foi penoso, à hora do calor mesmo com algumas sombras, mas também por não podermos passar naquela fabulosa estrutura, já nem falo no tempo extra que demorámos.

O trilho começava a desanuviar do perigo. Pouco tínhamos descido mas daquele lado do abrigo notava-se alguma manutenção e cuidado. Como se o percurso até ao abrigo fosse mantido por uma entidade diferente. Ou simplesmente mantido... Enquanto passando o abrigo era o caos. As pontes suspensas sucediam-se e até um túnel a la MIUT para passar para o outro lado da montanha havia. Mau! Tu queres ver que tenho de tirar o frontal do fundo da mochila? Não estava à espera desta. Espera estamos na Suíça. Um botão de pressão. E plim! O túnel tinha iluminação temporizada, com paineis solares algures. Muito bom!



Ainda nos faltavam talvez umas 2 horas de percurso quando vemos pela primeira vez em formato XXL o Matterhorn, a imagem icónica dos Alpes Suíços, o equivalente ao Monte Branco. Le Cervin para os franceses, il Cervino para os italianos. 4478m de montanha que devido à sua forma triangular é reconhecida mundialmente.

Se fosse de chocolate onde é que ele já ia...
Ring a bell?
Tivemos também o primeiro vislumbre de Zermatt encaixado no vale aos pés do Matterhorn. Uma visão simplesmente fabulosa. O nosso destino estava ali à mão de semear. Era só descer.

Zermatt, destino à vista
Nesta fase já tínhamos encontrado o Melo que seguia no seu ritmo em direcção a Zermatt. Tinha vindo pelo vale. Actualizámos a conversa, já não estávamos com ele desde que saímos e deixámo-lo no seu ritmo. Estava a viver o seu próprio percurso e tinha peripécias para contar. Até já! Encontramo-nos em Zermatt. Depois juntaram-se a nós o Eduardo e o Hugo. Seguimos juntos depois de sabermos como lhes tinha corrido o dia. Mais histórias vindas da retaguarda do trilho. Tinha sido um dia cheio de emoções.
Às tantas o trilho está cortado e bem cortado. Tábuas impedem a passagem e várias placas avisam que o trilho está danificado e não é possível progredir. Só nos restou antecipar a descida e seguir a placa que dizia Zermatt.

Já cá em baixo atravessámos uma ponte castiça e entrámos no trilho que vinha de St Niklaus pelo vale. Faltavam 3 Km para Zermatt. Depois como por magia e como se tivéssemos combinado acabámos por nos juntar todos nesse trilho. O Boleto que tinha vindo pelo vale já vinha junto com a Filipa e o Neville que tinham descido mais atrás. Grande entrada em Zermatt da comitiva. Só faltava o Melo que vinha no seu ritmo. O Eduardo que também desceu mais cedo já tinha ido comprar as Super Bocks e estava a fazer uma brutal bolonhesa.
Faltavam as palavras para descrever o que ia na alma de cada um. A grande viagem estava concluída. Ao percorrermos as ruas sem carros de Zermatt parecia que tinha descido num outro planeta. Os pequenos táxis eléctricos só ajudavam a compor o cenário. Quando o Melo chegou a missão estava cumprida. Tínhamos realizado com sucesso a Haute Route em 5 etapas. Ainda deixámos um bocadinho por fazer e tudo. Uma profunda paz apoderou-se de mim. Entrei num estado zen em que tudo o resto ou estava alinhado com o universo ou simplesmente era irrelevante. Foram muitos meses de planeamento, de pesquisa, de leitura, de contactos. Tudo o que podia correr bem, correu bem.



Haute Route é uma viagem fantástica. Feita em 4 dias e meio é demasiado agressiva e só ao alcance de quem esteja com uma grande forma física. A nós faltou-nos meio dia ou apenas a experiência necessária para vencer aqueles cumes gelados, Nunca o saberemos. Eu acredito que vou voltar, Haute Route não é uma rota única. É uma série de possibilidades e de alternativas, pelo menos durante algumas partes do percurso. Embora cada um assuma a sua responsabilidade neste tipo de aventuras, não imagino o que seja algo correr mal e ter de carregar o sentimento de ter contribuído para isso. Por isso a felicidade ter proporcionado a todos uma aventura inesquecível é algo que me enche a alma e me incita a continuar.

Pode parecer um lugar comum mas acreditem quando vos digo que a viagem de 2017 já começou a ser preparada. Onde e quando? Isso agora....

Um grande abraço a todos os amigos que acreditaram e ajudaram a tornar real esta viagem. Espero que tenham desfrutado tanto como eu da maior aventura de sempre. Não tenho qualquer duvida que vi as mais belas paisagens do mundo e estive nos locais mais fabulosos deste planeta. Não serão os únicos mas  tenho tempo e paciência para continuar a descoborir os restantes.

O parcial do dia marcou 41 Km com 2900 m D+ (em 11h)
O total ficou em 174 Km com 11900 m D+ (em 41h e 50m)

Até à próxima

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