St. Niklaus fica no mesmo vale que Zermatt e em caso de
necessidade esse seria o percurso a fazer para o último dia. Vale abaixo até
Zermatt, um trilho tranquilo sempre junto ao rio e à estrada que liga as duas
localidades. 20 Km de tranquilidade. Obviamente que isso não era forma
aceitável de terminar esta aventura. Para o ultimo dia o cardápio só tinha um
prato. Europaweg!
E o que é Europaweg (trilho Europa em alemão) ? É simples.
Em vez de irmos tranquilamente pelo vale, subimos 1600 m D+ e vamos pela
encosta esquerda do vale, sempre a 2500m de altitude, até que perto de Zermatt
descemos e entramos na cidade. Para além da brutal subida inicial, da qual nos
esquecemos quando chegamos lá acima, fica apenas a faltar percorrer todo o trilho
até Zermatt. E que trilho senhores, que trilho….
Na véspera ao jantar a nossa compatriota fazia de interprete
para a dona do Hotel. Europaweg?!? A cara séria da senhora fazia antever
dificuldades. Depois de traduzido dava: vocês não conseguem fazer Europaweg num
dia. Conseguimos sim. Não conseguem. Elas lá iam insistindo que não, mas depois
relembrámo-las que éramos loucos. Os loucos conseguem. Afinal eram só 40 e tal
Kms, o que poderia correr mal ?
Já tinha lido muita coisa sobre Europaweg. Sabia que o
trilho era de progressão lenta e com inúmeras zonas algo complicadas de passar.
Basicamente Europaweg era um trilho onde não era
suposto haver um trilho. Um trilho inventado e roubado à montanha, sempre à
beira do precipício, sempre com uma brutal vista do vale cá em baixo, 1600 m
mais abaixo. O problema é que os invernos e os degelos vão mostrando a sua
força e na luta homem-natureza já sabemos quem é o mais forte. O trilho, ou o
que resta dele nalgumas partes, necessita de intervenções e reparações constantes,
sob pena de ficar completamente intransitável.
Mas antes de Europaweg era preciso chegar lá acima, 1600 m acima
do nosso hotel. Só aí iria começar a festa. Seguíamos todos em grupo. A subida
ia ser dura e sendo o ultimo dia acho que ninguém estava propriamente com muita
energia para atacar a subida de outro modo que não fosse em alegre convívio.
Pelo menos enquanto a inclinação permitiu o convívio. Rapidamente as coisas
empinaram, entrámos na floresta quase vertical que nos levou ao topo. Inclinações
de 45 a 50%, por vezes. Muito calor que só as zonas com mais árvores acalmavam.
Os troços descobertos permitiam já uma vista incrível de St. Niklaus e de todo
o vale.
Desde já algo me estava a chatear: água. Não tinha encontrado
água na subida, coisa quase impossível mas que estava a acontecer. A minha
garrafinha de meio litro estava já a ser racionada. O sol estava muito forte e
embora não houvesse propriamente calor aos 2600 m o dia ia ser passado quase
totalmente ao sol.
Não, não é possível correr para já no Europaweg. Tentar que as pedras que escolhemos não desabem do seu equilíbrio periclitante já é uma tarefa a tempo inteiro...
As paisagens são como podem ver de cortar a respiração. A progressão é lenta e extremamente delicada. Muito poucas zonas oferecem um trilho para correr sequer. Atenção 100% focada no percurso. Em muitas zonas não se dá um passo sem mentalmente ter já pré-definido alguns pontos de apoio alternativos. É que o problema é que em muitos locais o degelo do inverno levou a montanha encosta abaixo...a montanha e o trilho. Só ficou uma zona em que vamos mesmo ter de passar porque não há outra opção.
Uma das inúmeras passagens muito complicadas |
O perigo deste trilho era recompensado quando olhávamos para o outro lado do vale. A vista era deslumbrante. Por vezes não convinha mesmo nada olhar para baixo. Eram 1600m quase a pique.
Là em baixo o vale para Zermatt e a montanha do outro lado |
O trilho aqui já era tão exíguo mas quando desaparece a corda é mau sinal |
Zermatt ainda muito longe não se vê no final do vale |
A pouco e pouco o trilho vai dando tréguas. A espaços deixa-se correr. Passámos pontes suspensas, pontes de madeira, mares de pedras, perigosas curvas em que o trilho desaparecia e dava lugar a uma ribanceira a pique e finalmente chegámos ao Europahut, o abrigo a meio caminho. Não é preciso ser bruxo para adivinhar que todo aquele abrigo foi transportado para ali com um helicóptero e montado no local.
Diria que estávamos sensivelmente a meio do dia. Seguia com o Luis Matos nesta zona. De repente avistamos a brutal ponte suspensa... que visão. Coloquei as duas fotos para terem uma noção da dimensão da coisa, na 1ª, e para de facto verem a ponte na 2ª. Cliquem nas fotos para ampliar
Europa hut. Reparem no tipo a apanhar sol na varanda. LoL |
Ainda nos faltavam talvez umas 2 horas de percurso quando vemos pela primeira vez em formato XXL o Matterhorn, a imagem icónica dos Alpes Suíços, o equivalente ao Monte Branco. Le Cervin para os franceses, il Cervino para os italianos. 4478m de montanha que devido à sua forma triangular é reconhecida mundialmente.
Se fosse de chocolate onde é que ele já ia... |
![]() |
Ring a bell? |
Zermatt, destino à vista |
Às tantas o trilho está cortado e bem cortado. Tábuas impedem a passagem e várias placas avisam que o trilho está danificado e não é possível progredir. Só nos restou antecipar a descida e seguir a placa que dizia Zermatt.
Faltavam as palavras para descrever o que ia na alma de cada um. A grande viagem estava concluída. Ao percorrermos as ruas sem carros de Zermatt parecia que tinha descido num outro planeta. Os pequenos táxis eléctricos só ajudavam a compor o cenário. Quando o Melo chegou a missão estava cumprida. Tínhamos realizado com sucesso a Haute Route em 5 etapas. Ainda deixámos um bocadinho por fazer e tudo. Uma profunda paz apoderou-se de mim. Entrei num estado zen em que tudo o resto ou estava alinhado com o universo ou simplesmente era irrelevante. Foram muitos meses de planeamento, de pesquisa, de leitura, de contactos. Tudo o que podia correr bem, correu bem.
Haute Route é uma viagem fantástica. Feita em 4 dias e meio é demasiado agressiva e só ao alcance de quem esteja com uma grande forma física. A nós faltou-nos meio dia ou apenas a experiência necessária para vencer aqueles cumes gelados, Nunca o saberemos. Eu acredito que vou voltar, Haute Route não é uma rota única. É uma série de possibilidades e de alternativas, pelo menos durante algumas partes do percurso. Embora cada um assuma a sua responsabilidade neste tipo de aventuras, não imagino o que seja algo correr mal e ter de carregar o sentimento de ter contribuído para isso. Por isso a felicidade ter proporcionado a todos uma aventura inesquecível é algo que me enche a alma e me incita a continuar.
Pode parecer um lugar comum mas acreditem quando vos digo que a viagem de 2017 já começou a ser preparada. Onde e quando? Isso agora....
Um grande abraço a todos os amigos que acreditaram e ajudaram a tornar real esta viagem. Espero que tenham desfrutado tanto como eu da maior aventura de sempre. Não tenho qualquer duvida que vi as mais belas paisagens do mundo e estive nos locais mais fabulosos deste planeta. Não serão os únicos mas tenho tempo e paciência para continuar a descoborir os restantes.
O parcial do dia marcou 41 Km com 2900 m D+ (em 11h)
O total ficou em 174 Km com 11900 m D+ (em 41h e 50m)
Até à próxima
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