sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Via Valais - Etapa 3 - Turtmann Hut - Tasch


O dia acordou fresco no cabana de Turtmann. A previsão do tempo estava a degradar-se a cada dia, mas ainda assim estava prevista uma manhã de céu limpo. Claro que aquela altitude ( >2500 m) o fresco é sempre mais fresco. Mas sem vento e com um céu limpo, rapidamente as coisas iriam aquecer. 
Este viria a ser o dia mais curto em distância mas também o mais intenso em emoções. O texto reflete isso mesmo, desculpem se é longo, mas não consigo abreviar. Arranjem 10 minutos, prometo uma viagem cheia de emoções fortes. 


Tínhamos escolhido o turno das 7 h para o pequeno almoço. O das 6 h pareceu-nos excessivo. Por isso quando acordámos, pela janela do quarto já se viam vários grupos prontos a seguir viagem. O pequeno almoço foi excelente, tendo em conta as limitações da cabana. 

A etapa deste dia tinha várias alterações. O percurso original levava-nos até Randa, 4 Km antes de Tasch. Inicialmente até tínhamos planeado dormir em Randa, mas a inexistência de alojamentos com possibilidade de cancelamento gratuito até perto da data de decisão da viagem, fez-nos mudar para Tasch. Afinal seriam só mais 4 Km para fazer no final da etapa... e mais 4 Km para voltar a Randa no dia seguinte porque é dali que parte o trilho para subir à Ponte Charles Koening (o ponto alto da próxima etapa).

Haute Route - St Niklaus 2016
No site da Via Valais já havia uma referência ao facto do trilho para Randa estar cortado em 2019 e deveríamos confirmar no refugio de Turtmann a viabilidade dessa descida. Ainda antes do voo sair de Lisboa já tinha recebido um mail do refugio a dizer que o trilho estava de facto cortado e que deveríamos descer para St Niklaus. Epa, St. Niklaus ?!?! Conhecemos bem, passámos por lá em 2016. Mas no percurso deste ano, St. Niklaus ficava 13 Km antes de Tasch. Ou seja, depois de descermos da montanha seria preciso fazer mais 13 Km vale acima. É certo que não haveria grande desnível, mas 13 Km são 13 Km, em final de dia.... 

Como esperado, na cabana o guarda confirmou o que já tinha dito. Há demasiadas pedras a cair nessa descida, muito perigoso e deveríamos seguir para St. Niklaus, na prática andar para trás e descer muito antes do que pretendíamos. Na Suiça mandam os Suiços e já tínhamos tido na véspera uma amostra da coisa. Nem íamos argumentar. 

Mas a etapa deste dia há muito tempo que me tinha deixado em guarda. Tínhamos de passar o Schöllijoch , uma passagem de alta montanha aos 3343 m com 80 m verticais, uma espécie de escalada, com cordas, escadas, degraus de ferro cravados na rocha (a la via ferrata).... 80 m... a descer claro, só para piorar.... 

Os organizadores da Via Valais chamam-lhe a etapa rainha do percurso... medo... alertam para o facto de, embora seguro, não garantem que as pessoas a consigam fazer, dado que, são 80 metros verticais, uma parede com cordas, ferros espetados da rocha, escadas...adiante, lá chegaremos.

Saímos em direcção ao glaciar que viram no filme da etapa anterior. A paisagem é avassaladora. A dimensão do glaciar ali mesmo ao lado. Impressionante. Iríamos começar a subir a sério até ficarmos ao nível do glaciar e passarmos até acima dele e ver toda a sua extensão pela montanha. Paisagem alpina a sério. Sem palavras. O céu continua azul e o sol nascido há pouco tempo já ia fazendo mossa. Estávamos perto dos 3000 m, mas sempre a subir e sem pinga de vento, o calor apertava. 

No abrigo o guarda tinha sugerido subir ao Barhorn. O Barhorn é um pico, no nosso caminho, mas que obrigava a subir 500 m D+ adicionais e descer talvez uns 400 m D-. Aproximávamos do sítio onde teríamos de optar por seguir o caminho inicialmente planeado, ou gastar cerca de 1h30 a 2h para subir o tal Barhorn e voltar a descer, para depois ainda passar o pepino do Schöllijoch, que nessa altura era para mim uma grande incógnita. 


Embora tivesse vontade de subir o Barhorn para ver a vista, na prática não passava de mais um cachucho com uma vista brutal, um pouco mais acima de onde íamos estar. Era preciso decidir e seria o Pedro que tinha mais dificuldade nas subidas que iria decidir. Por mim o que ele dissesse estava óptimo e fiquei contente que tivesse dito que dispensava a subida. Decisão sensata que se revelaria imprescindível um pouco mais à frente. Regra de ouro na montanha: na duvida deves ser sempre conservador e não aventureiro. As montanhas, quando calha, são implacáveis com os aventureiros.
Vê esta foto com atenção. Há 1 pessoa
a iniciar a descida e mais 3 já a descer.
Consegues vê-las?

Seguimos para o Schöllijoch. Subir mais uns 200 m e lá surge o ponto alto do dia e de todo o percurso. E
ra agora! Ou passas ou.... passas. Não há alternativa. 

Schöllijoch... mete medo... numa primeira análise. Não vês a descida. É uma parede a pique. Vês umas cordas, a desaparecer num trilho que desaparece também. Vês que é alto, muito alto. Lá em baixo um glaciar aguarda quem descer. Soprava uma leve brisa fresca que ao fim de uns minutos já me estava a arrefecer. Chega um grupo de 3 amigos à conversa, vão avaliar o princípio da descida, trocam uns piropos, pergunto se vão descer. Dizem-me que não, que tinham lá estado a semana passada para descer, mas não desceram. E hoje tinham outros planos e não iam descer. Falam do glaciar lá em baixo. Repito o que li no blog da Via Valais, que era um glaciar pequeno e que se atravessava rapidamente. Essa parte era tranquila. 

Pergunto se é seguro. Dizem-me que sim, que convém levar um arnês para estarmos sempre presos e de facto reparo no cabo de aço, parede abaixo. E claro um capacete, por causa das pedras que podem cair... Só coisas que não tínhamos... O Eduardo chega entretanto, eu já estava a ficar com frio e não podia ficar ali mais tempo a racionalizar aquela cena. 

As fotografias nos Alpes tornam tudo flat e fácil. Eram apenas 80m até lá abaixo

Não gosto de encucar muito estas coisas, é para descer vamos a isto. Olha eu vou descer! Puxo do sentido de missão, ponho o medo no bolso e bora lá. Arnês para o cabo de aço não há. Mas há uma corda, ou várias cordas, quase sempre...
Regra número zero: NUNCA LARGAR A CORDA!
Regra número um: NUNCA LARGAR A CORDA!
Regra número dois: ... etc.

Eu lá em baixo.. cheguei... aquele risquinho de sujidade na neve

Um obstáculo de cada vez, escolhendo cada sítio para cada pé, cada degrau metálico, cada degrau das escadas, cada pedra para apoiar. A pouco e pouco o chão estava cada vez mais perto. O percurso termina com 3 segmentos de escadas verticais, presos à rocha. Cada degrau como se fosse o primeiro lá chego ao chão, ou melhor ao gelo do glaciar. Uuuufffff! 

O grupo de 4 pessoas em plena descida

Cá em baixo percebo que a inclinação do glaciar não dá para brincadeiras. Rapidamente calço as correntes nas sapatilhas (uns elásticos com umas molas que se põem por cima das solas, tal como correntes nos pneus) e testo a coisa. Pouca diferença faz, todo o cuidado é pouco para não cair e deslizar desamparado por ali abaixo.

O Eduardo seguido do Pedro a iniciar a descida, lá mesmo no alto
Passo então a espectador para ver o Eduardo e o Pedro descer. Também não é fácil assistir. As pedras caem constantemente, não daquele local mas de uma parede mesmo ao lado. Afasto-me, mas é preciso estar sempre à coca não venha algum calhau por ali abaixo. Um outro grupo de 4 pesssoas tinha iniciado a descida. Logo a seguir começam a descer o Eduardo e o Pedro. Oiço uma pedra a cair e logo o Eduardo para o grupo mais abaixo "Attention!" "Pedro cuidado com as pedras, passou-me a centímetros da cabeça" "Desculpem" diz o Pedro. E mais abaixo uma voz grita indignada num português de emigrante "Tenham cuidado!!! Não deixem cair pedras!!!" 

Os 2 grupos lá realizaram a descida com sucesso e eu vim até um local mais abaixo sentar-me a assistir. O momento de stress do dia tinha passado... achávamos nós. 
Depois de descer, a vista do glaciar é avassaladora

Depois de repor energias regressamos ao percurso. Agora era descer até St. Niklaus. Primeiro 600 m D- até Topali Hut, um refúgio fantástico por cima de St. Niklaus e depois 1600m D- até St. Niklaus. Se descer estas altitudes nunca é fácil, esta descida seria tudo menos pêra doce...
Topali Hut um refugio fora do comum numa localização incrível e com uma vista avassaladora

O refúgio era bem frequentado
Até ao refúgio, e um pouco depois dele, a coisa foi tranquila. Uma descida íngreme, muitas vezes em pedra, mas gerível. Passámos ribeiras, pontes, vimos cascatas que se transformavam em rios subterrâneos para nascer de novo aos nossos pés. Aproveitávamos para renovar a água das garrafas com água pura e gelada. 

A vista da sala de jantar do refúgio. 1500m acima de St Niklaus no vale

As pontes são sempre uma presença contínua por cima das ribeiras mais fortes

Uma cascata enorme desaparecia na montanha e voltava a nascer ali aos nossos pés.
Aproveitar para encher de água fresca.

O tempo já vinha a mudar desde que descemos o Schöllijoch, mas nos últimos minutos as nuvens que surgiam da montanha ficaram mais negras e o impermeável que já tinha saído da mochila, teve de passar à acção. A mochila vestiu também a sua capa. As gotas eram grossas e geladas. Continuávamos a infindável descida. A chuva estava prevista para o final da tarde e não para a hora de almoço. Entre as primeiras gotas e uma chuvada a sério foram poucos minutos. Tentávamos descer como se St. Niklaus fosse já ali e fôssemos escapar à intempérie. O vento e a chuva fustigavam-nos e ao longe a trovoada fazia-se ouvir cada vez mais perto.  

Felizmente entrámos numa zona de floresta densa que protegia um pouco do vento e da chuva. Estaríamos aos 2000 m. Faltavam talvez outros 1000 m até lá abaixo. O trilho de floresta densa era fantástico e preferia não o ter feito naquelas condições, tal era a inclinação de muitas zonas. Por vezes vislumbrávamos a vila lá muito em baixo, encostas escarpadas que nos faziam perguntar, como vamos descer ali? E quando chegávamos a essas zonas eram trilhos esculpidos na rocha, degraus, com ferros e cabos de aço a conferir alguma protecção. Tudo demasiado exposto para o tempo que se fazia sentir e a nossa pressa em descer. 

Aqui uma descida com cordas mas das mais pacíficas
O trilho, como disse, é de uma beleza única mas incompatível com vertigens. Iríamos demorar talvez 1 hora ou mais. Estava sempre quase, mas depois era mais uma garganta escarpada, mais um troço de floresta...estava sempre quase. A chuva sem dar tréguas, a trovoada zangada e nós a tentar chegar cá abaixo. 

E chegámos claro. Depois de avaliar onde estávamos, decidimos voltar um pouco atrás até St. Niklaus para apanhar o comboio para Tasch. Foi o mais caro comboio de sempre face aos 13 Kms da viagem. A chuva lá fora reconfortava a nossa decisão de apanhar o comboio em vez de ir a pé, embora tal hipótese estivesse fora de questão. 

Está quase, e estava sempre quase, sempre a pique até lá abaixo

Soube bem chegar rapidamente e ter tempo para pôr tudo a secar, tomar um grande banho no hotel (já em falta há 2 dias) e sair para ir jantar ao restaurante em frente. Tinha vários pratos portugueses (para verem a quantidade de patrícios que por ali vivem) mas o preço dos mesmos iria colocar um bitoque ou uma carne de porco alentejana no top dos pratos típicos tugas mais caros de sempre. Optámos por um banal hamburger.

Depois de um longo dia cheio de emoções o nosso oásis parecia ter cinco estrelas

No fim de tudo ficámos a pensar em como seria se tivéssemos subido ao Barhorn e perdido as tais 2 horas... como seria apanhar aquela trovoada aos 3300 m de altitude a descer o Schöllijoch....

Se conseguiram ler isto tudo, parabéns! Descansem um pouco e ganhem fòlego para a etapa seguinte que podem ler neste link Via Valais - Etapa 4 - Tasch - Zermatt (inclui a passagem na maior ponte pedonal suspensa do mundo!)

2 comentários:

  1. Viva Paulo, a foto 14 é qualquer coisa....

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    1. Põe na tua lista Ricardo. Abrigo Topali 1500m acima de St Niklaus, não há que enganar. O abrigo é uma cena fora da caixa, super high tech e essa é a vista quando estás na sala de refeições...

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